Exposição de risco, EPIs escassos e falha de comunicação são algumas das situações citadas por técnicos de enfermagem do hospital municipal São José de Joinville

Medo constante. Cansaço psicológico e físico. Estranheza à realidade. Essas são as principais sensações que o técnico de enfermagem João* sente atuando durante a pandemia. Ele trabalha no hospital municipal São José, de Joinville, e faz parte da assistência geral. Por ser do grupo de risco, João não atende pacientes positivados ou com suspeita de Covid-19. 

No início da pandemia houve alguns direcionamentos do hospital, mas, segundo João, os funcionários não receberam, cada um, os equipamentos de proteção recomendados (máscara N-95, face shield ou óculos de proteção). Só recebiam caso fossem atender algum paciente com suspeita de coronavírus. 

O técnico só recebeu o face shield graças ao acompanhante de um paciente que era atendido no setor em que ele atuava. Por gostar do atendimento, o acompanhante — que trabalha com impressão 3D — fez um face shield para cada pessoa da ala. “Isso não veio do hospital”, relata João. 

Em março, o Sindicato de Servidores Públicos de Joinville e Região (Sinsej) denunciou a falta de orientações, equipamentos de higiene e proteção para os servidores da saúde que estavam atuando na pandemia. A entidade alegava que faltavam equipamentos e materiais no Hospital Municipal São José, Policlínica Aventureiro I, UBSF Rio do Ferro, UBSF Rio do Ferro, Centro POP, UBSF Jardim Paraíso V e VI e UBSF Km 4. 

Além disso, João conta que no início a recomendação era de que todos os profissionais da saúde, em caso de suspeita, fizessem a testagem. Elas aconteciam de três formas, de acordo com o técnico. 

Na primeira, o profissional da saúde com suspeita passava pelo pronto socorro caso apresentasse os principais sintomas da Covid-19 (febre, tosse seca, cansaço, dores, etc). Atendendo esses critérios, a pessoa faria o exame de swab (via nasofaringe) — aquele do cotonete. A segunda, por meio dos testes gratuitos ofertados por uma empresa privada de Joinville. A terceira, por teste rápido no hospital sem agendamento prévio. Caso houvesse vaga, o profissional podia realizar. 

De acordo com o Painel Covid-19 Joinville, até o momento, 2.333 profissionais da saúde foram infectados pelo novo coronavírus. Isso representa 6,5% dos 35.634 casos confirmados. 

Com a pandemia tomando proporções gigantescas e profissionais da saúde testando positivo para a Covid-19, o hospital decidiu cancelar os testes que eram realizados no local, segundo João. A justificativa se dava em torno do colapso que haveria com o afastamento dos profissionais. A administração achou que “talvez fosse melhor que o hospital lidasse com profissionais positivados que estariam assintomáticos na assistência do que simplesmente não ter profissional para  atender”. 

Além de achar a decisão egoísta, João a achou complicada pois não a vivenciou como administrador. “Vivenciei isso como profissional que não teve o teste realizado porque eles (testes) foram suspensos”, ressalta o técnico. 

Mesmo com esta decisão, o colapso no atendimento aconteceu. “Esse colapso houve porque a gente sentiu na pele, porque em uma equipe de oito técnicos tinha dias que ia apenas um trabalhar, pois os outros estavam de atestado”, diz. 

Só os serviços necessários eram realizados, como curativo e medicação, pois algumas equipes precisavam ser remanejadas para outros setores, tornando o atendimento deficitário.

Arte gráfica com o depoimento de uma das fontes

O termo “gripezinha” popularizou após um pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro, que utilizou a expressão para minimizar a pandemia.

Além do mais, João relata que colegas vivenciaram momentos semelhantes àqueles vividos por profissionais da saúde na Itália. Pessoas com o rosto super marcado por causa dos equipamentos e jornadas de trabalho extremamente exaustivas. Mesmo com a exposição de risco à saúde, João conta que durante esse período não sofreu constrangimento ou outros tipos de exposição. 

Máscaras para alguns

Já a técnica Alice*, que atua no mesmo hospital, relata situação de constrangimento junto à exposição de risco. Segundo ela, antes do decreto do uso obrigatório de máscaras em todos os locais, as máscaras descartáveis não foram disponibilizadas para usar em todos os ambientes.

Antes do decreto, a gerência pedia para usar máscaras em caso de necessidade. Contudo, em abril, a situação do uso de máscaras mudou na cidade. Usá-la passou a ser obrigatório para algumas atividades. O decreto Nº 37.892, de 13 de abril de 2020 definia o seguinte: “[…] a utilização da máscara será obrigatória para as seguintes situações: Para acesso a estabelecimentos comerciais cujo funcionamento esteja autorizado pelas normas federais, estaduais e municipais. Para uso de táxi ou transporte compartilhado de passageiros. Para o desempenho de atividades laborais em ambientes compartilhados com outras pessoas, nos setores público e privado”. 

Mesmo com o decreto, Alice conta que o uso de máscara no hospital, por profissionais que não atuavam diretamente com pacientes com Covid, ainda estava restrito. “A gente colocava a máscara (descartável do hospital) e saia pelo corredor. Isso era mal visto. Chamavam a atenção. Diziam que não era pra usar no corredor”, conta a técnica. 

Em abril, um colega de Alice fez uma denúncia no Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina (Coren). O órgão foi até o hospital e regularizou a situação. “Foi liberado o uso de máscara em todos os ambientes, para todas as pessoas”, diz Alice. 

Para confirmar a denúncia, foi encaminhado um e-mail ao Coren. A assessoria do órgão informou: “Todos os processos decorrentes de denúncias são sigilosos e as informações são repassadas apenas às partes envolvidas. Apenas quando há encaminhamento para o Departamento Jurídico para ser alvo de alguma ação civil pública, aí sim fazemos a divulgação dos trâmites”. 

O erro na comunicação também foi um ponto destacado por Alice: “Tivemos direitos violados com certeza. Teve falta de comunicação daquilo que era pra ser feito da forma mais correta”. 

Assim como João, Alice não atendeu pacientes com Covid-19. 

Diferente dos dois, a técnica Ana* trabalha na UTI de Covid desde o começo da pandemia. Para o pessoal que lida direto com o vírus não faltou nenhum EPI (face shield, óculos, máscaras, avental). 

Mas, segundo ela, alguns profissionais da área não receberam a insalubridade de grau máximo. No São José, os profissionais recebem insalubridade de grau médio, pois, conforme Ana, “eles (o hospital) dizem que os profissionais não trabalham com agente biológico”. 

Segundo a Norma Regulamentadora 15, se caracteriza insalubridade de grau máximo “trabalho ou operações em contato permanente com  pacientes em isolamento por doenças infectocontagiosas, bem como objetos de seu uso, não previamente esterilizados; carnes, glândulas, vísceras, sangue, ossos, couros, pêlos e dejeções de animais portadores de doenças infecto-contagiosas (carbunculose, brucelose, tuberculose); esgotos (galerias e tanques); e lixo urbano (coleta e industrialização)”. 

Alguns funcionários só passaram a receber insalubridade de grau máximo porque fizeram “pressão” no hospital. Ana explica que o São José passou a fazer um memorando (documento oficial) no Sistema Eletrônico de Informação (SEI) — sistema de gestão de processos e documentos eletrônicos. 

Todo dia 6, por exemplo, a chefia faz o memorando com o nome de quem vai trabalhar nas alas da Covid. Este documento vale por um mês, que seria o próximo pagamento. Porém, se Ana tiver que trabalhar agora, como explica, até mês que vem na ala Covid não receberá esse período de insalubridade porque o nome dela não vai estar no memorando. 

Outras situações destacadas por Ana se referem também à falta de comunicação. Segundo ela, muitas vezes os técnicos de enfermagem não são informados dos pacientes que estão com suspeita de Covid. Ela deu um exemplo. 

Na metade de novembro, a equipe da qual Ana faz parte cuidava de uma paciente com suspeita da doença, mas eles não sabiam disso. “Se quer havia sido coletado o swab para detectar ou não a contaminação por Covid. Eu trabalhei com ela na segunda, terça, quarta. Hoje (quinta-feira) chegou o swab como positivo”, relata Ana. “Isso eu acho uma afronta aos direitos de todo o trabalhador […]. É nosso direito saber se um paciente é suspeito ou não para que assim a gente possa utilizar os EPIs adequados.”

Assim como João, Ana também foi crítica à decisão do hospital de trabalhar com profissionais assintomáticos ao invés de afastá-los por temor a um possível colapso no atendimento. 

“Hoje temos muitos funcionários afastados e grande parte deles positivaram. E a demora desse exame, que leva de sete a dez dias, é um absurdo. Muitos funcionários já voltaram a trabalhar sem saber o resultado do seu exame. Essa semana duas funcionárias voltaram a trabalhar depois de sete dias e os resultados dos exames ainda não saíram.” 

Mesmo tendo os direitos violados, João, Alice e Ana não fizeram uma denúncia no disque 100, “serviço de disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos”. Ana diz que houve algumas reclamações para a comissão de controle de infecção hospitalar (CCIH) do hospital e para a gerência, que conversou com os profissionais e prometeu melhorar a situação. “Pura demagogia”, diz a técnica. 

Outro lado

Por meio da assessoria, o Secretário Municipal da Saúde de Joinville e Diretor-Presidente do Hospital Municipal São José, Jean Rodrigues da Silva, informou que no início da pandemia os materiais estavam restritos, mas não faltaram. 

Disse também que foram dadas orientações a todos os profissionais da rede sobre o uso correto dos equipamentos de proteção individual, para reforçar a conscientização sobre como evitar os riscos de contaminação no momento de desparamentar após o atendimento.

Prefeito de Joinville sentado à mesa junto do Secretário de Saúde
Jean Rodrigues da Silva (direita) junto do prefeito Udo Döhler (esquerda) no início da pandemia / Foto: Patrícia Della Justina, AN

Sobre a testagem, o secretário explicou: “Uma das nossas preocupações desde o início da pandemia era poder testar os profissionais de saúde. Porém no começo só havia a disponibilidade do exame swab (via nasofaringe) para sintomáticos”. 

A coleta era feita somente dentro dos critérios da Vigilância Epidemiológica do Estado, pois  o material ia para análise apenas no Lacen (Laboratório Central de Saúde Pública de Santa Catarina). “Assim que conseguimos novas oportunidades de testagem, foi ofertado a todos os servidores da Secretaria da Saúde de Joinville e do Hospital Municipal São José.”

A assessoria do secretário disse que em relação à insalubridade o grau é definido pela Secretaria de Gestão de Pessoas (SGP), responsável pela área da segurança do trabalho.  

O secretário também foi indagado, por meio da assessoria, sobre situações relatadas por Alice e Ana, como o fato da administração chamar atenção dos profissionais que utilizavam máscaras em todos os locais (mesmo o decreto obrigando isso) e em relação à falta de comunicação referente aos casos suspeitos de Covid. Mas até a publicação desta reportagem não foram obtidas estas respostas. Caso elas cheguem, a reportagem será atualizada. 

Denúncias no disque 100

Das 120.408 denúncias de violações aos direitos humanos, feitas entre maio e junho, 18.586 estão relacionadas à covid-19, segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Nesse período, foram mais de 100 denúncias feitas todos os dias no Brasil. Todas envolvendo a pandemia. O gráfico abaixo mostra, em números, as  denúncias feitas em Santa Catarina.

Arte Gráfrica | Denúncias ao Disque 100
Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

No estado catarinense, a maioria das violações, envolvendo a Covid-19, estão associadas à exposição de risco à saúde. Além disso, a lista de transgressões inclui exposição, constrangimento, assédio moral, ameaça, agressão física, tortura psíquica, maus tratos e lesão corporal.

* Para resguardar a identidade das fontes, foram utilizados nomes fictícios na reportagem

Reportagem e Artes: Kevin Eduardo