“Novo normal”expõe problemas sociais já conhecidos
Termos utilizados na tentativa de amenizar a gravidade da pandemia impactam diretamente na forma que a população lida com a situação
Em 8 de agosto, o Brasil ultrapassou a marca de 100 mil mortes por covid-19, menos de cinco meses desde o anúncio da suposta primeira vítima fatal da doença no país, em 17 de março. Apesar do número chocante em tão pouco tempo e das mais de 1 mil mortes diárias, as pessoas parecem estar anestesiadas. Termos como “novo normal” são cada vez mais utilizados para descrever uma realidade dura e grave, que está bem longe da normalidade. Palavras que escondem por trás de significados literais um forte teor ideológico e negacionista.
“As palavras não apenas comunicam. Elas constroem e destroem coisas também”, afirma o professor e doutor em Linguística Alex de Britto Rodrigues. Ele explica que tudo o que falamos e escrevemos está ancorado a um contexto social de onde vem o significado. “Um uso linguístico pode, de modo consciente, amenizar alguma situação, o que depende da compreensão do contexto e do valor do que é dito naquele contexto.”
Para a doutora em Antropologia Social Maria Elisa Máximo, termos como “novo normal” são criados e ditos como uma forma de normalizar tudo o que estamos vivendo. “De algum modo, se está tentando tirar o foco da dor que o momento gera para impulsionar outro tipo pensamento: o de tirar algo positivo da situação”, reflete Elisa. Ela reforça que essa busca por ressignificação é algo natural, movida pela nossa própria “necessidade de superação”, mas que também é usada por movimentos estruturais de forma ideológica, no sentido de amenizar a gravidade da situação, de capitalizar e de fazer com que as pessoas continuem produzindo. As consequências desse movimento são o comodismo e, a já presente, banalização da morte.
A psicóloga Gabriela Kunz Silveira afirma que o ser humano é capaz de se acostumar com tudo, inclusive com a morte de centenas de pessoas diariamente. “Isso é da ordem do humano”, explica ela. “As pessoas têm dificuldade em mudar o modelo de vida. Elas voltam à lógica anterior [de ‘normalidade’]”, afirma Gabriela, que diz que encarar a realidade muitas vezes é um processo difícil para as pessoas. Mas quanto a banalização em si, a psicóloga acredita que isso também esteja ligado à falta de políticas públicas que promovam a valorização à vida.
Além do contexto sociocultural, o professor Alex afirma que o locutor fala de uma posição social, ou seja, o impacto de uma fala está diretamente ligada ao poder de influência e de autoridade que a pessoa exerce dentro da sociedade. “Se algum desconhecido, sem formação, fala sobre vacinas, causa um impacto diferente de quando um especialista conhecido fala sobre o mesmo assunto”, exemplifica o professor, que aponta haver exceções, em decorrência dos contextos sociais.
Isso nos leva a questionar o papel do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, ao chamar, em mais de uma ocasião, o coronavírus de “gripezinha”. “‘Gripezinha’ não é só uma palavra”, afirma Maria Elisa. “É uma expressão carregada de sentido e de valores já enraizados na nossa sociedade, muito ligados à coragem e a uma ideia de masculinidade. Esses termos têm as funções de diminuir a gravidade da doença, normalizar a situação e de desinformar a população”, conclui. Funções que têm como finalidade, segundo a cientista social, isentar os poderes públicos das suas responsabilidades.
Quanto a um “novo normal”, num sentido de mudanças sociais em um futuro pós-pandemia, a Maria Elisa diz que a sociedade está em uma “constante transformação” e que acontecimentos, como a pandemia, contribuem para esse processo. Porém, ela não acredita que isso poderia ser chamado de um “novo normal”, pois não há um “velho normal”. “Aquilo que é considerado normal hoje é produto de uma construção histórica e social de muito tempo. E não resultado de apenas um fator, como a pandemia”, explica ela.
Para Gabriela, esse “novo normal” já passou. A psicóloga concorda com Maria Elisa, quanto ao uso do termo estar relacionado a uma ruptura com um senso de antiga normalidade, mas ela questiona como isso se aplica no futuro. “Não sei se após a pandemia, o autocuidado e a solidariedade vão continuar sendo valores praticados. Pelo menos no nosso cenário atual, a gente já não vê mais o respeito e o cuidado com o outro, que havia no início da pandemia.” Ela diz que tenta ser otimista, mas que, de um ponto de vista psicológico, é difícil as pessoas mudarem comportamentos e hábitos em um período de tempo tão curto.
É tempo de se reinventar
Outra expressão da vez é o velho e conhecido “tempo de se reinventar”. O termo, muito utilizado por influenciadores e empresários, ganhou um significado ainda mais incisivo e palpável devido ao contexto atual. “Esse é um termo que me parece um mandato”, explica Gabriela. “É algo que nós já estávamos acostumados desde antes da pandemia. Num sentido de que somos responsáveis individualmente por sermos pessoas bem-sucedidas e felizes.”
Para Gabriela, a sociedade tem uma visão muito individualista do que é se reinventar. Uma visão muito ligada aos bens materiais, meritocrática e exigente. “Esse ‘tempo de se reinventar’ coloca uma cobrança e uma individualização, que faz com que as pessoas se sintam ainda mais culpadas e mais impotentes diante de uma situação que vai muito além delas.” Essa cobrança, de acordo com a psicóloga, pode afetar as pessoas de forma muito negativa, inclusive na saúde mental. “Não posso afirmar com certeza, pois ainda não há estudos publicados neste sentido no momento, mas, sim, esses discursos ajudam, não exclusivamente, a formar o sofrimento mental.”
A psicóloga considera que a ideia de se reinventar durante a pandemia, principalmente no contexto de isolamento social, é sobre uma oportunidade de se descobrir, ter novas experiências consigo mesmo, aproveitar o tempo com a família e explorar a criatividade. Mas, devido à toda complexidade do momento, nem todas as pessoas veem a situação desta forma, e isso é natural.
Mais que um simples número
A pandemia do novo coronavírus mudou os planos do trocador de moldes Tiago Oliveira de Santiago, 31 anos. Ele é um dos mais de 3,5 milhões de brasileiros que têm ou tiveram a doença. Mesmo não tendo nenhum dos sintomas graves, Tiago conta que se sentiu muito apreensivo. “Eu tinha medo que o meu estado de saúde piorasse”, confessa ele.
Atualmente melhor, Tiago, que faz curso de Gestão de Produção, teve que lidar com mudanças no horário de trabalho, se adaptar às aulas de ensino à distância e com a chegada de sua filha. “Está sendo uma fase de adaptação. Toda mudança gera desconforto”, conta o rapaz, que após o período em casa, voltou a trabalhar, segundo ele, “tomando todos os cuidados necessários”. Santiago diz que está se sentindo muito ansioso durante este período. “Eu fico muito preocupado em relação à pandemia. Principalmente por ter uma bebê de quatro meses em casa”, relata.
A psicóloga Gabriela diz que esse mal estar é algo natural dadas às circunstâncias de extrema incerteza. “Não é uma situação fácil”, afirma ela. “É uma situação de iminência de morte, em que a gente não tem controle da situação.”
Santiago encara a situação com seriedade, pois “são vidas que estão sendo perdidas”. Ele não acha que toda esta condição pode ser chamada de normal ou “novo normal”, porque vai de encontro a nossa cultura, mas acredita que a interação digital mais intensificada, algo que ele considera positivo, permanecerá após a pandemia.
Segundo dados do site Coronavírus Brasil, Tiago também faz parte dos mais de 2,5 milhões de brasileiros que se recuperaram do vírus. Número que não invalida as mais de 110 mil mortes que ocorreram até o momento. A realidade de Tiago e a de inúmeras pessoas foram afetadas de diversas formas, direta e indiretamente, pela pandemia, desde novos hábitos e o próprio isolamento ao desemprego e o luto. Não há normalidade aqui.
Alguns dados
Segundo dados da universidade estadunidense Johns Hopkins, os casos de covid-19 já são mais de 22,5 milhões em todo o mundo. Já o número de mortes está em cerca de 790 mil. O Brasil continua em segundo no ranking, tanto em número de casos, cerca de 3,5 milhões, quanto de óbitos, pouco mais de 110 mil.
Somando os números de óbitos mensais divulgados no Portal de Transparência do Registro Civil, entre janeiro e junho de 2020, houve 680.232 óbitos, 77.120 a mais, se comparado ao mesmo período de 2019, em que foram registrados 603.112.
Repórter: Pedro Novais
Foto: Michael Dantas/AFP
Arte: Kevin Eduardo