Troca frequente de celulares: o novo vício dos brasileiros
Somente 19% da população usa o mesmo celular por mais de dois anos
“Eu vejo um lançamento, se eu gostar, eu já estou trocando. A frequência é tipo, muito grande”, afirma o vendedor interno em uma operadora de celular, Pabton dos Santos Pereira. Desde o começo do ano até abril, ele trocou de aparelho cinco vezes. Segundo Pabton, a troca está muito ligada ao número de lançamentos de celulares diferentes e inovadores que as empresas investem todo ano. “O mercado está aí, são várias companhias, várias empresas lançando o tempo todo”, explica.
Uma pesquisa de 2021 da Digital Turbine revelou que apenas 19% dos brasileiros ficam com um celular por mais de dois anos. O marketing do “aparelho novo do ano” produzido pelas empresas leva os consumidores a entrarem em ciclos viciosos de compra, incentivando a sempre adquirirem o último lançamento. A Apple, por exemplo, já lançou 34 modelos diferentes desde 2007, e a Samsung mais de 515 modelos desde 2003.
As empresas seguem produzindo, e os consumidores continuam comprando. De acordo com a última edição da Pesquisa Anual do Uso de TI, publicada pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), já existem mais celulares que habitantes no Brasil. Somente ano passado foram contabilizados 242 milhões de smartphones ativos em julho, para um total de 214 milhões de habitantes. O estudo ainda mostra que são vendidos quatro celulares para cada aparelho de TV. Em 2021, foram vendidos 1,35 bilhão de smartphones mundialmente, segundo dados da IDC (International Data Corporation), organização voltada para pesquisas de mercado.
“São várias companhias, várias empresas lançando o tempo todo.”
Pabton dos Santos Pereira, vendedor
O ano de 2022 registrou uma modesta desaceleração na produção desses equipamentos. A previsão inicial disponível no mesmo estudo da IDC indicava um aumento de 1,6% na remessa de celulares em 2022, porém, de acordo com uma atualização do documento, foi prevista uma queda de 3,5% para este ano. Essa baixa nas vendas é resultante de vários fatores, como inflação, restrições de suprimentos para a fabricação de componentes eletrônicos, enfraquecimento da demanda e tensões geopolíticas. Contudo, a IDC acredita que esse é um retrocesso de curto prazo, e prevê que o mercado deve se recuperar em 2023 com uma taxa de 5% de crescimento.
A analista de marketing Leticia Demori admite que já foi uma consumidora compulsiva, e chegou a trocar de celular em menos de um ano ou um ano e meio. Ela acredita que quando uma pessoa quer adquirir muito um produto, ela vai comprar. “Hoje, analisando minha vida, eu não compraria um celular tão caro como já comprei. Em épocas passadas, faria isso traquilamente”, confessa.
O técnico em meio ambiente Adriano Ponte, com superior em gestão ambiental e apresentador do canal de tecnologia Canaltech, acredita que os consumidores estão trocando seus celulares com mais frequência, tornando esse ciclo cada vez mais difícil de ser quebrado. “Eu me considero consumista, com certeza. Eu sou uma pessoa que gasta de forma muito consumista e compulsória”, declara Pabton.
Consumo em aplicativos
Se antes poucas pessoas tinham acesso aos aparelhos, hoje é raro imaginar alguém que não tenha um celular para utilizar pelo menos para trabalho, estudos ou passatempo. Conforme a pesquisa State of Mobile 2022, foi registrado o uso do celular por cinco horas e 24 minutos por dia por pessoa em 2021, no Brasil. Em 2019, esse número totalizava quatro horas e seis minutos. Segundo o relatório, o início da pandemia em 2020 ajudou a acelerar os “hábitos móveis” das pessoas, mas foi em 2021 que eles ficaram ainda mais visíveis e concretos. A cada dez minutos, sete foram gastos em aplicativos de redes sociais de foto e vídeo somente em celulares com sistema Android.
Letícia comenta que usa seu celular para acessar aplicativos de redes sociais, como Instagram, WhatsApp e TikTok, e aplicativos de entretenimento, como Netflix e GloboPlay. Além disso, ela também acessa programas de finanças e estudos. Os conteúdos baixados em dispositivos móveis somaram 230 bilhões em celulares com Google Play e iOS no mundo e o Brasil ficou em quarto lugar no ranking entre os países que mais fizeram downloads ano passado, contabilizando mais de 10 bilhões, de acordo com a pesquisa State of Mobile.
Conforme dados da Digital Turbine, 20% dos brasileiros afirmam que é impossível ficar sem mexer no celular por mais de 30 minutos, e só 19% conseguem estender o tempo para no máximo 60 minutos.
O início de tudo
Antes dos celulares serem como conhecemos hoje, em sua maioria finos, com uma tela que ocupa toda a extensão do produto, com cores vibrantes e repletos de funções, eles eram robustos, pesados – definitivamente não caberiam no bolso – e só tinham duas funções: fazer e receber ligações. O primeiro protótipo de telefone móvel foi desenvolvido em 1973 pela Motorola, o tão esperado DynaTAC 8000X, criado pelo engenheiro eletrotécnico Martin Cooper. Porém, sua comercialização ao redor do mundo iniciou somente dez anos depois, em 1983. O aparelho media 33 centímetros e pesava quase 800 gramas.
Como nada se cria, tudo se transforma, com o DynaTAC não foi diferente. Seu antecessor, o Ericsson MTA, foi criado em 1956 pela empresa Ericsson. De móvel ele não tinha praticamente nada, já que só conseguia ser transportado com a ajuda de um carro porque pesava 40 quilos.
Após esse marco no mundo dos aparelhos sem fio, os celulares foram tomando forma. No começo dos anos 2000, a Blackberry lançou o primeiro celular com conexão de internet 2G, que também permitia aos usuários enviar e-mails e organizar seus dados com mais eficiência. Na época, a marca ficou bastante popular e vários modelos começaram a aparecer em produções audiovisuais, como Bones, CSI e A Grande Aposta.
Impactos socioambientais
A fabricação de um celular envolve muito mais do que idealizar um produto com a última tecnologia. Por trás da fabricação, é preciso extrair diversos minérios para a construção do aparelho, como o cobalto, níquel, lítio e outros metais raros. Em um relatório de 2017 sobre a mineração de cobalto na República Democrática do Congo, a organização de direitos humanos Anistia Internacional acusou as empresas Apple, Samsung e Sony de estarem envolvidas em trabalho infantil.
O documento rastreou o comércio de cobalto a partir de áreas onde havia trabalho infantil. O mineral era comprado por intermediários nas minas e posteriormente vendido à empresa Congo Dongfang Mining, subsidiária da Huayou Cobalt Ltd. Pelo menos 80 mineradores morreram no subsolo congolês entre setembro de 2014 e dezembro de 2015, segundo a organização.
Uma das soluções que Adriano Ponte acredita ser indispensável para que celulares sejam construídos de forma mais sustentável é a bateria ser substituível. Segundo ele, a placa de um celular poderia funcionar por dez, vinte, trinta anos, mas a bateria para de funcionar antes em dois a três anos, e apenas essa alteração já faria diferença no ciclo do produto, pois o celular não precisaria ser descartado por completo.
Descarte e reciclagem
De acordo com o Greenpeace, a falta de preparo da indústria para receber e reciclar aparelhos descartados só aumenta o acúmulo de e-waste, o lixo eletrônico. Geralmente esses celulares descartáveis vão para aterros sanitários, causando risco de contaminação do solo, ar e cursos d’água.
O vendedor interno Pabton dos Santos Pereira conta que nunca chegou a descartar um celular, pois como troca com frequência, opta por passar o aparelho antigo para sua mãe. “A gente faz esse processo. Comprei um novo, eu passo o meu para ela e vendo o dela, que já está um pouco mais ultrapassado ou quando não é o caso, eu apenas publico o aparelho em aplicativos e vendo eles”, afirma.
A analista de marketing Letícia Demori afirma que todos os seus celulares antigos foram repassados ou vendidos de forma mais barata para pessoas da sua família. “Nenhum deles foi trocado por estar ruim ou quebrado. Mas já tivemos aparelhos em casa que foram descartados em um coletor que fica no estacionamento do Shopping Mueller. Lá eles têm coleta de eletrônico e eletrodoméstico, lâmpadas, baterias, pilhas e outras coisas.”
De acordo com Adriano Ponte, a Samsung e a Xiaomi estão liderando há muito tempo uma política de atualização de software – em que celulares passam a receber atualizações de sistema por mais tempo, prolongando a vida útil e, consequentemente, prorrogando o descarte. Porém, conforme uma apuração do portal de notícias de tecnologia The Elec, a Samsung acaba indo na contramão da sua política de atualizações. Segundo o site, a empresa quer bater a meta de produzir 355 milhões de aparelhos até o final de 2022, ultrapassando os 300 milhões de celulares fabricados em 2021.
Para reduzir o desperdício e diminuir o impacto ambiental causado pelo lançamento massivo de celulares, é necessário que as empresas desenvolvam aparelhos com vida útil mais longa, com componentes reciclados e reutilizados de aparelhos sem uso em bom estado e voltem a construir celulares onde seja possível trocar a bateria gasta por uma nova.