
Professores questionam impacto da nova carteira nacional
Projeto promete benefícios, mas professores cobram salários dignos e melhores condições de trabalho
A professora Jocelia Teles dos Santos, 62 anos, soma seis anos na rede estadual e mais de uma década dedicada à sala de aula. Lecionando artes em turmas do 3º ano do ensino fundamental até o 3º do ensino médio, ela enfrenta uma rotina exaustiva e um sentimento recorrente de desvalorização. “Quando ouço falar em valorização docente, lembro do Japão, onde os alunos respeitam o professor e até ajudam a cuidar da escola. Aqui, o que recebo muitas vezes é cadeira arrastada de propósito para atrasar a aula”, conta.

Em setembro de 2025, o governo federal sancionou a Lei nº 15.202, que cria a Carteira Nacional Docente do Brasil (CNDB). Com validade de 10 anos, o documento será reconhecido em todo o território nacional e promete conceder descontos em eventos culturais, hospedagens e serviços financeiros. O Ministério da Educação anunciou a medida como um marco de valorização da categoria. Para docentes, contudo, como Jocelia, trata-se de um “paliativo”. “É simbólico, quase irrisório diante das nossas despesas reais. O que precisamos é reajuste salarial e melhores condições nas escolas”, afirma.
A CNDB deve unificar a identificação de professores da rede pública e privada em todas as etapas da educação. De acordo com o Ministério da Educação, além do reconhecimento simbólico, a carteira terá valor oficial e permitirá acesso a parcerias culturais e comerciais. O objetivo declarado é oferecer benefícios concretos e fortalecer a identidade profissional do magistério.
Contudo, o texto legal ainda depende de regulamentação. Estados e municípios terão de repassar dados funcionais dos docentes ao MEC para a emissão das carteiras, o que levanta dúvidas sobre prazos e logística.
Desafios de implementação
Em Itapoá, no litoral norte de Santa Catarina, a Secretaria Municipal de Educação recebeu a notícia com otimismo, mas reconhece que há incertezas. “Ainda aguardamos informações oficiais do MEC, mas vemos a iniciativa como um passo importante. Nossa rede já dispõe de sistemas internos para organizar os dados, mas será necessário verificar as exigências técnicas de integração”, explica a secretária de educação de Itapoá, Andressa Dambrós. Segundo a secretária, cerca de 100 professores da rede devem ser contemplados.
A promessa é de que o acesso seja “célere e desburocratizado”. Para isso, a Secretaria planeja abrir canais diretos de atendimento e garantir que todos os docentes recebam a carteira. “Ela tem também um valor simbólico importante, pois reforça a dignidade e o papel social dos professores”, acrescenta Dambrós.
Se no discurso oficial a carteira é apresentada como avanço, sindicatos avaliam a medida como insuficiente. O presidente do SindEducação-ES, Leonil Dias da Silva, que representa os educadores técnico-administrativos da rede particular, considera a proposta um equívoco. “Oferecer 15% de desconto em cinema ou hotel não é valorização, é um clube de vantagens. Como um professor que mal consegue pagar as contas vai usufruir desses benefícios?”, questiona.
Leonil chama atenção ainda para a exclusão dos profissionais que representa. “Sem coordenadores, bibliotecários, técnicos, atendentes, o pessoal da portaria e da limpeza, não há educação. São trabalhadores essenciais que ficaram de fora da carteira. É um tapa na cara”, critica.
A pesquisadora e educadora Larissa Stephanie Pereira avalia que a CNDB tem valor simbólico, mas não resolve problemas estruturais. “É um reconhecimento importante, mas não ataca a raiz: salários defasados, turmas superlotadas, infraestrutura precária e saúde mental de professores e alunos”, analisa.
Segundo ela, a medida corre o risco de se tornar “marketing governamental” caso não venha acompanhada de políticas consistentes: “A valorização real passa por condições de trabalho dignas, progressão de carreira justa e respeito à autonomia pedagógica. Sem isso, a carteira é apenas um gesto.”
Entre esperança e ceticismo
Nem todos, porém, rejeitam a iniciativa. A professora Heloísa do Rosário, concursada há 10 anos na rede municipal, vê com bons olhos os benefícios culturais. “Tudo que agrega é válido. Esses descontos podem facilitar o acesso a eventos que, muitas vezes, deixamos de participar. Se pudesse escolher, claro que optaria por um reajuste salarial. Estou há 12 anos em sala de aula e acredito que a remuneração não acompanhou esse tempo de dedicação”, diz.
Heloísa destaca ainda a sobrecarga da jornada: são 40 horas semanais, que considera pesadas para a saúde mental. “Um dos maiores reconhecimentos seria a redução dessa carga, que é bastante desgastante”, completa, e acrescenta: “A carteira pode até trazer algum benefício, mas valorização de verdade é salário digno no fim do mês e condições melhores para trabalhar. O resto é maquiagem”.
O contraste entre a promessa governamental e a realidade vivida em sala de aula mostra que a CNDB, embora simbólica, não responde às demandas mais urgentes da educação brasileira.
Para mais informações sobre a Carteira Nacional Docente do Brasil (CNDB), os interessados podem acessar o portal oficial do Ministério da Educação, onde serão divulgadas as próximas etapas de regulamentação e orientações para emissão do documento.