
Crianças sofrem efeitos do uso precoce de telas
O contato precoce com celulares tem se tornado cada vez mais comum entre crianças e adolescentes. Um estudo da Cetic.br revela que, entre mais de 25 milhões de jovens entrevistados, cerca de 6 milhões tiveram acesso às telas antes dos seis anos de idade.
A história de Derick, 10 anos, filho de Sabrina Fortunato, ilustra bem esse cenário. A joinvilense, de 29 anos, explica que o filho teve o primeiro contato já no primeiro ano de idade, quando a mãe estava atarefada, sozinha e sem rede de apoio: “a tela funcionou como um recurso de contenção para garantir que ele permanecesse seguro e engajado enquanto eu executava as atividades.”
Diferentemente do que a maioria, a tecnologia foi um vetor para as habilidades, considerando que a tela foi utilizada como uma ferramenta educativa para introduzir e desenvolver o reconhecimento de letras e palavras, a mãe afirma que não existe nenhum sentimento negativo, que até percebe que esse uso precoce foi benéfico. “Quaisquer desafios na fala foram atribuídos ao seu diagnóstico de autismo. É importante salientar que, devido ao uso de conteúdo educativo de qualidade, ele já demonstrava reconhecimento e verbalização das letras do alfabeto” explicou Fortunato.
A mãe destaca ainda que por volta de um ano e meio, o filho já entendia os numerais, formas geométricas, e nomes de animais. Mas não quer dizer que Derick tenha acesso irrestrito ao celular, existem regras claras: Durante a semana, o uso é de no máximo 1h por dia, já aos finais de semanas, não ultrapassa 2h por dia.
A influência do contato precoce
Ao ter contato antecipado com as telas, muitas crianças deixam de brincar e de desenvolver habilidades cognitivas fundamentais. É o que afirma a neuropsicóloga Raquel Lourenço Correia, 25 anos: “Quando uma criança está com o celular na mão, não há estímulo adequado para o desenvolvimento cognitivo nem para a coordenação motora.”
A nova tendência de vídeos curtos influenciam nos estímulos gerados pela criança, com o objetivo de prender o consumidor pelo máximo de tempo, geram uma sensação de recompensa imediata, causando uma dificuldade de concentração, memorização e desenvolvimento da própria linguagem. No entanto, ao saber equilibrar o que apresentar na tela e a realidade, pode sim trazer benefícios, afirma a psicóloga infantil Halana Antonagi. “Existem vários jogos educativos, existem musiquinhas que acabam realmente trabalhando esses estímulos mais visuais. Podem ajudar na estimulação da linguagem, só que tudo com uma base de dosagem, em um ponto para ser um auxiliador e não uma coisa que prejudique”, explica.
Antonagi explica que o cérebro da criança na fase inicial funciona igual uma esponja, ela vai absorvendo os estímulos do dia a dia, criando conexões e se fortalecendo: “é o período que a criança está apta para poder aprender, no qual existe a plasticidade cerebral, que é justamente essa capacidade de se moldar, conforme as experiências vividas e de poder aprender com isso”. Segundo a especialista, os estímulos mais frequentes tendem a se fortalecer, enquanto os menos utilizados enfraquecem. Quando a criança passa muito tempo em frente às telas, os estímulos visuais e sonoros chegam em forma de bombardeio. Até os desenhos animados têm se adaptado a esse padrão, tornando-se mais coloridos e acelerados, o que pode deixar os pequenos mais agitados.
A ausência de dosagem no uso da internet pode gerar sinais de desinteresse pelo mundo real. Irritabilidade, agressividade, alterações no sono, agitação antes de dormir e dificuldade em lidar com frustrações são alguns dos sintomas observados. Quando os pais tentam retirar o aparelho para acalmar a criança e o comportamento persiste, é hora de ligar o sinal de alerta.
Os pais podem ser os responsáveis
A rotina de trabalho e a falta de tempo têm levado muitos pais a recorrerem aos celulares e tablets como forma de entreter os filhos. Quando esse uso ocorre sem supervisão, é comum que as crianças cheguem à escola já dependentes dos dispositivos, demonstrando irritação quando o acesso é interrompido.
“Por isso o professor sofre dentro da sala de aula. Ele precisa competir com a tecnologia. E o que parece mais interessante? Assistir a um vídeo ou ouvir o professor falando?”, questiona a neuropsicóloga Raquel Lourenço Correia. “Tudo aquilo que é em excesso faz mal à nossa vida. É preciso saber dosar o uso da tecnologia, que pode ser uma ferramenta positiva, mas também trazer prejuízos significativos.”
Dados do Ministério da Saúde apontam que cerca de 12% das crianças brasileiras de até cinco anos apresentam suspeita de atraso no desenvolvimento, incluindo a linguagem. Correia relaciona esse índice ao uso excessivo de tecnologia desde os primeiros anos de vida.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que crianças menores de dois anos não tenham nenhum contato com celulares ou videogames. Dos dois aos cinco anos, o tempo máximo deve ser de uma hora por dia; de seis a dez anos, até duas horas; e de 11 a 18 anos, no máximo três horas diárias, sempre com supervisão dos pais.
Um novo fenômeno recente é de crianças sabendo mexer em aparelhos tecnológicos mesmo antes de se alfabetizar, isso impacta também na questão da alimentação e futuramente com a seletividade alimentar, quando uma pessoa mais nova deixa de ter contato com a natureza para ter acesso a tela, vai ter dificuldade de tocar até mesmo no alimento. “Comer a melancia, o feijão, que tem uma textura um pouco mais espessa, algumas frutas, pode influenciar até na questão da alimentação e futuramente com a seletividade alimentar”, explica.
A especialista reforça que a responsabilidade pelo uso precoce da tecnologia é, em grande parte, dos próprios pais. “São eles que apresentam o celular ou o tablet aos filhos. Falamos muito das crianças que têm acesso à tecnologia, mas os grandes responsáveis são os pais, porque são eles que compram.”
Existem benefícios também no uso da tecnologia
Nem tudo que envolve tecnologia e jovens representa riscos. Existem projetos que utilizam recursos digitais como ferramentas de formação e proteção. Um exemplo é o curso gratuito Safe Child – Escola de Proteção Digital, criado em 2023 pela ONG ChildFund. O objetivo é orientar pais e educadores sobre direitos digitais, privacidade, segurança online e formas de identificar situações de abuso ou violência. “Muitos pais não se sentem preparados para orientar seus filhos, e as escolas, por vezes, não têm políticas claras de proteção digital. O Safe Child tem sido uma ferramenta poderosa para capacitar educadores e responsáveis”, afirma Maurício Cunha, presidente executivo da ONG.
Outro projeto de destaque é o Letramento Digital, voltado para alunos do 4º e 5º anos do ensino fundamental em escolas públicas. Mais do que ensinar a usar computadores, a iniciativa estimula o raciocínio lógico, a organização de ideias e a criação de jogos, animações e protótipos. “As crianças deixam de ser apenas consumidores de tecnologia e passam a produzir e aplicá-la em problemas reais”, explica Luciano Naldi, coordenador do projeto.

O programa também desenvolve habilidades socioemocionais, como trabalho em equipe, comunicação e resiliência diante de erros. Ao integrar conteúdos de português e matemática, amplia a leitura de mundo e forma alunos mais autônomos e criativos. “Esse processo não significa apenas dominar ferramentas ou aplicativos, mas preparar jovens para não serem apenas consumidores de conteúdo digital”, completa Naldi. O letramento digital, segundo ele, não substitui o ensino tradicional, mas o complementa, formando cidadãos mais preparados para usar a tecnologia de forma responsável.