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Com relatos, dados e especialistas, a reportagem expõe a engrenagem que transforma inseguranças em lucro e o caminho até o adoecimento mental
PUBLICADO EM
11 DE DEZEMBRO DE 2025
11 DE DEZEMBRO DE 2024
“Naquele momento, assim que a gente voltou, depois da pandemia, eu me deparei com uma sociedade muito internet. Nesse momento eu vi a necessidade de me colocar dentro de um padrão”. Essa fala é de Beatriz Melatti, 21 anos, bailarina. “Acabou que eu entrei numa bola de neve gigantesca, né? Do emagrecimento. Aquele emagrecimento extremo que, pra mim, eu nunca tava satisfeita. Eu ia lá, tirava uma foto e falava assim: ‘meu, tem que emagrecer mais, tem que emagrecer mais, porque eu preciso parecer fulana'”. Beatriz tinha 17 anos quando desenvolveu a anorexia nervosa, um transtorno alimentar e mental no qual a pessoa restringe a ingestão de calorias a um nível extremo. “Ali naquela época que eu tive o transtorno, foi realmente, assim, muito complicado porque eu sentia muitas dores abdominais. Então, foram muitas coisas juntas. Foi o transtorno alimentar, junto com uma gastrite nervosa e a síndrome do intestino irritável”.
Hoje, Beatriz estuda Nutrição e vê na internet um desafio para a saúde e profissão. “A gente passa quatro anos aprendendo sobre planejamentos alimentares. Aí as blogueiras vão lá, vão nos médicos, tomam um negócio e acham que tá tudo beleza”.
A psicóloga Rafaela Dallagnol percebe na prática os impactos da indústria wellness nos seus pacientes. “Ultimamente, os pacientes têm relatado que as redes sociais afetam bastante, porque eles acabam se comparando, acabam vendo rotinas que não são reais, mas mesmo assim vem essa comparação”. Rafaela é especialista em terapia cognitiva comportamental e com formação em terapia comportamental dialética. “Essa comparação, essa dificuldade de ter o próprio dia, de ter as próprias rotinas, acaba gerando ansiedade, gerando uma pressão interna que vem desse externo”.
Analisando casos como os de Beatriz e também de pacientes da Rafaela, constata-se que a indústria do bem-estar nasce junto da ideia de comparação e venda. Influenciadores de todos os tipos “vendem” um estilo de vida imposto como saudável e fazem milhões de seguidores “compararem” a ideia de suas rotinas. Assim, vidas exaustivas e desgastantes se tornaram populares desde a pandemia, fazendo com que diversas pessoas como a Beatriz afirmassem sentir na pele os impactos dessa indústria. “Então, pra mim, a indústria do wellness fez muito mal. Você tirar essas crenças que você tem, que as pessoas colocam em cima de você, é muito difícil”, conta a bailarina.
O nutricionista Yan Burg afirma que com o advento da internet tudo mudou. Com a alimentação, não foi diferente. “Muita informação relevante ganhou popularidade e foi um grande passo para educação nutricional. No entanto, surgiram vários problemas: a grande quantidade de informação falsa sendo disseminada em troca de engajamento, a venda de produtos ou metodologias e a polarização determinada por vivências.”
Yan ainda cita de exemplo a comparação excessiva acometida pelas redes sociais. “O indivíduo que mostra uma rotina onde consegue manter duas horas de exercício físico pela manhã, dispõe de uma variedade quase infinita de alimentos variados, tem acompanhamento de profissionais para cuidar de sua saúde e muitas vezes vendem a ideia que um corpo definido ou com um padrão estético ambicionado pela sociedade é conquistado apenas pelo esforço.” O nutricionista ainda afirma: “Aquilo que essa pessoa no instagram vive não é possível para 99% da população”.
Se há um mercado que cresce diariamente é o da promessa de “viver melhor”. A chamada indústria global do bem-estar virou um gigante de cifras, movimentando até US$6,3 trilhões, o equivalente a R$34 trilhões. O número vem do Global Wellness Institute (GWI), que acompanha o setor, que vai de skincare à retiros de yoga, de consultas nutricionais a viagens com aromaterapia incluída. É dinheiro correndo solto.
Há doze anos, em 2013, o faturamento global era de US$3,4 trilhões; hoje é praticamente o dobro. O salto de 65% em mais de uma década mostra que o wellness deixou de ser nicho e virou estilo de vida tão grande que já supera a própria indústria farmacêutica, avaliada em US$1 trilhão, segundo estudos anteriores do GWI.
As projeções também não aliviam. A expectativa é que esse mercado cresça 7,3% até 2028, quando deve chegar aos US$9 trilhões. O tamanho do setor, claro, tem a ver com a sua amplitude. O GWI lista 11 ramos do bem-estar. Três deles concentram 52% do faturamento: cuidados pessoais e beleza; comida saudável, nutrição e perda de peso; e atividade física.
O gasto médio anual com bem-estar na América do Norte chega a US$5.108 por pessoa. Já na América Latina e Caribe, o valor despenca para US$476, mais de dez vezes menos.
A África Subsaariana fecha a lista, com apenas US$68 por pessoa ao ano. A diferença entre o primeiro e o último colocado passa de 75 vezes, um abismo que escancara que o bem-estar global é tudo, menos igualitário.
Na pesquisa do GWI, o tema foi desmembrado em várias categorias. Separamos os principais tópicos entre meditação; turismo wellness; perda de peso; spas; cuidado pessoal e beleza; alimentação saudável; nutrição; atividade física; medicina preventiva; co-living; águas termais e práticas alternativas. Mas a pergunta que não quer calar é: quais os setores que mais lucram dentro desse mundo?
Em uma era em que influencers ditam tendências, algoritmos nos cutucam para comparar cada detalhe da vida e um mercado trilionário vende paz de espírito em potes coloridos, o bem-estar virou dois caminhos: um desejo legítimo, e um produto com etiqueta alta. Como resume a psicóloga Rafaela Dallagnol, “o autocuidado virou negócio”. E dos grandes.
No Brasil, a potência se traduz em números, só no primeiro trimestre de 2024, a influenciadora Virginia Fonseca, que arrasta 53 milhões de seguidores no Instagram, faturou mais de R$ 107 milhões com suas marcas, incluindo a Wpink, especializada em suplementos e cosméticos que prometem melhorar tudo, do humor à pele.
Se considerarmos o faturamento da influenciadora, é possível dizer que cada 15 segundos dela valem bem mais do que ouro em cápsula. Dividindo esse valor pela média de publicações e entregas comerciais do período, especialistas estimam que um único story patrocinado de uma influenciadora desse porte pode facilmente ultrapassar a casa dos R$200 mil, dependendo da campanha, do engajamento e do combo de entregas (feed + reels + sequência de stories).
No TikTok, vídeos com a hashtag #grwm (Get Ready With Me), o famoso “arrume-se comigo”, já passam das 150 bilhões de visualizações. Gente se maquiando para ir ao cinema, para jantar, para o date… E até para dormir. No meio disso, deslizam publis quase invisíveis, indicando “aquele” creme, “aquela” vitamina, “aquele” aparelhinho milagroso. Algo bem parecido com o que a influenciadora faz.
São produtos que prometem mundos e fundos, pele mais lisa, poros fechados, menos inchaço, luzes rejuvenescendo o rosto, rugas sumindo por encanto. O pacote completo da perfeição instantânea. Só que o uso descontrolado, sem orientação dermatológica, pode se tornar um tiro no escuro.
E o que preocupa ainda mais é a idade de quem está entrando nesse universo. Nos Estados Unidos, crianças e adolescentes de até 14 anos já respondem por quase metade das compras de skincare em farmácias. Cremes que não foram feitos para peles tão jovens têm causado irritações, queimaduras e até acelerado sinais de envelhecimento. Ironia fina: a busca precoce pela pele perfeita pode justamente roubar essa perfeição.
O quão mais pessoas a indústria do bem estar precisa machucar as para entendermos que as marcas dela vão além de stories e posts perfeitos. Ela se trata de transtornos alimentares e traços psicológicos que talvez nunca sejam curados. A busca incessante pelo corpo perfeito, pela dieta das influenciadoras, pela caneta emagrecedora e cintura de violão, machucam as pessoas que buscam apenas uma rotina saudável e sem excessos.
Os transtornos alimentares, como bulimia, anorexia e compulsão alimentar, são frutos físicos que se manifestam das dores psicológicas causadas pelo wellness. “Atualmente, com a grande popularização das redes sociais, os transtornos se desenvolvem com o indivíduo buscando um formato corporal que ele não pode atingir”, diz Yan Burg. E isso não de forma pessimista, mas o nutricionista diz isso, porque se busca resultados de forma imediata. Ele reforça: “um físico com grande desenvolvimento muscular, por exemplo, precisa de anos para ser construído, mas a pressão estética leva as pessoas a buscarem esses resultados para ontem”.
É importante destacar também que as pessoas que vendem essas realidades muitas vezes não têm formação alguma. Influenciadores wellness, como Virginia Fonseca, apenas repassam em suas redes sociais recortes de suas realidades. “Se eu vejo que uma pessoa fez e deu certo, eu também quero fazer a dieta maluca de comer 36 ovos por dia e achar que meu corpo vai ficar bem com isso. Porque parece que na internet todo mundo é médico, todo mundo é psicólogo e psiquiatra”, afirma a psicóloga.
Para Beatriz, a virada de chave foi difícil. “Aconteceu no momento que percebi que eu ia morrer mesmo. Foi quando minha nutricionista virou pra mim e falou: ‘Bea, se você emagrecer mais, você morre. Você vai morrer’.” A bailarina não entendia o que estava acontecendo com seu corpo e nem o motivo de estar emagrecendo, sua cabeça e as pessoas em sua volta reforçaram que ela precisava estar magra. “As pessoas hoje chegam e falam: ‘Nossa, como você tava mais bonita e magra’. E na época, as pessoas falavam pra mim: ‘agora que você tá mais magra é o momento de você ir pra fora e conseguir contratos com as companhias de dança’.” A Bea, uma mulher de 1m76, aos seus 16 anos chegou a ter 50 quilogramas.
Além da dor psicológica, o corpo dela começou a falar. Ela parou de menstruar, não conseguia mais fazer as aulas e treinos destinados às competições que participava e então se viu num beco sem saída. Com a ajuda de profissionais, a acadêmica de nutrição começou a ganhar peso. Foi um processo lento e que ela carrega as dores até hoje. Beatriz se pergunta como seria sua vida se não tivesse passado por isso. “Talvez eu não tenha nem escolhido a minha profissão, então há males que vêm pra bem, sabe? Mas é possível sair disso e é importante a gente saber que um profissional é sempre a melhor opção!”
Redes sociais, suplementos, estética e cultura pop moldam a ideia de bem-estar. Mas o quanto disso é verdade? Descubra seu nível de conhecimento e teste sua percepção sobre o tema.
Primeira Pauta é o jornal-laboratório produzido pelos estudantes do curso de Jornalismo da Faculdade Ielusc.
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