Servidores públicos temem a nova reforma da previdência
Reforma da Previdência ainda em tramitação no Congresso deixa dúvidas sobre o futuro da educação.
Uma escola sem estruturas adequadas e centenas de alunos com problemas de aprendizagem, lidando com os conflitos existenciais que permeiam a adolescência. Agora, imagine professores dentro de uma sala de aula lidando com situações como essas.
Este é o cenário que os servidores temem que se agrave com as novas regras da aposentadoria propostas pelo governo Bolsonaro. A medida prevê um aumento de contribuição para profissionais que trabalham na rede pública de ensino.
Atualmente os professores da rede pública conseguem a aposentadoria com 55 anos de idade e 30 anos de contribuição. Já as mulheres se aposentam com 50 anos de idade e 25 anos de contribuição.
Com a nova proposta, a idade mínima para trabalhadores da iniciativa privada e servidores será de 65 anos para homens e 62 para as mulheres, e, ambos, terão que ter 30 anos de contribuição, além de ter pelo menos dez anos na administração pública e cinco no cargo que se aposentar.
Para a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo governo, caso seja aprovada, o projeto precisa passar em duas votações no plenário da Câmara de Deputados e em seguida ir para o Senado, além de obter 308 votos favoráveis.
Enquanto a emenda ainda tramita na Câmara e segue sem nenhum parecer, a reportagem do Primeira Pauta entrevistou especialistas para avaliar e trazer pontos que ainda estão em discussão, além de profissionais da educação que estão com dúvidas sobre como estarão suas condições de trabalho no futuro.
Era apenas um sonho de criança, que logo seria esquecido ao chegar na adolescência, mas na medida em que o tempo passou, Márcia Marques sabia que o seu destino era dentro de uma sala de aula.
Categórica, ela decidiu ser professora por influência de seus pais. As lembranças do profissionalismo e dedicação que sua mãe teve pela profissão pode ser sentido pela dedicação que ela tem pelos seus alunos atualmente.
As oportunidades foram surgindo de forma gradativa em sua vida. Há 23 anos, ela prestava vestibular para Pedagogia. Em seguida, conseguiu iniciar uma pós-graduação e já foi aprovada em um concurso público. “Tudo foi uma sucessão de oportunidades, mas o empenho foi fundamental”, afirma.
Amor e esperança por um futuro melhor – essa é a motivação que fez com que a docente voltasse para a sala de aula depois de ficar um ano e meio aposentada. Mesmo com as atuais propostas apresentadas pelo presidente Jair Bolsonaro, Marques acredita no futuro da educação brasileira.
Entretanto, a realidade salarial dos professores da rede pública de ensino ainda está longe do ideal. Na opinião de Márcia, o salário que se paga hoje não cobre as jornadas de trabalho que ela passa dentro de uma sala de aula.
“Educação é política. Envolve infraestrutura e muitas escolas não são adequadas. Isso dificulta o nosso trabalho e a gente tem que se esforçar para dar conta”, lamenta.
A profissão do magistério já se torna deteriorada e precária por pertencer ao serviço público. Assim avalia o economista Daniel Corrêa da Silva.
“No governo Dilma os servidores já não tinham direito a uma aposentadoria diferenciada.A condição criada para combater privilégios é muito boa à classe dominante, e vai ser contra a classe dos trabalhadores na mais absoluta elevação da exploração”, explica.
Márcia revela que geralmente precisava levar jogos de casa para os estudantes, pois as instituições não distribuem com qualidade esses materiais. Em muitas das vezes, ela improvisou os exercícios usando sucata.
Sala lotada. Crianças conversando, falta de estrutura e dupla jornada de trabalho. Cenário que vai ficar apenas na lembrança da professora. Ciente das dificuldades que iria passar, ela optou em voltar a dar aulas por meio período em uma unidade escolar da rede pública.
A docente trabalha atualmente no projeto SAP (Serviço de Apoio Pedagógico). A ação atende crianças com dificuldades de aprendizagem. “Eu voltei pra suprir a relação com as pessoas. Tinha saudade da rotina, mas sei que hoje em dia está difícil de ser professora”, lamenta.
Estrutura prejudica a rotina
Hoje, com 55 anos e uma carreira carregada de experiência, Márcia se preocupa com os profissionais que estão chegando no mercado de trabalho. Em sua opinião, caso a reforma da previdência for aprovada, alunos e professores serão prejudicados.
“Eles já vêm sentindo as dificuldades, cansaço físico e mental. Como esse profissional de mais idade vai dar conta de jovens que não conseguem nem parar sentado?”, questiona. Atitudes como essas serão primordiais para gerar insatisfação e desânimo.
A servidora avalia que a qualidade da educação vai cair e irá gerar muitos atestados médicos.
“Está bem difícil a sala de aula. Infelizmente, a geração é outra e a estrutura ainda se mantém antiga”, lamenta.
Na avaliação do economista Daniel Corrêa da Silva, a tendência da reforma é precarizar cada vez mais o trabalho dos professores. Ele reforça que os problemas vigentes do projeto é uma problematização que foi sendo colocado durante o governo do FHC, Lula, Dilma e Temer.
Há 18 anos trabalhando na educação, a atual diretora do Colégio Estadual Abdon Batista, em Jaraguá do Su, Iara de Fátima Oliveira, sabe dos problemas que permeiam o ensino público. Assim como muitos profissionais, várias questões faltam ser esclarecidas a respeito da nova proposta.
Segundo Iara, cada estado tem suas leis próprias, porém, o que está sendo comentado é que todas as categorias vão entrar em uma só norma. Ainda não está claro se os professores entrarão nesta regra.
Iara entende que isso não é nada bom. “Trabalhar em uma sala de aula com 30 alunos em três turnos em outras escolas é muito cansativo”, reclama.
Para a professora, não é à toa que existem muitos alunos afastados por doenças e professores readaptados. “Vão se afastar e desistir da profissão”, completa.
A quantidade de professores que já precisaram sair do trabalho por problemas de saúde é grande, 66% dos docentes. É o que aponta uma pesquisa realizada entre os meses de junho e julho de 2018 pela Associação Nova Escola.
O estudo ouviu mais de cinco mil educadores e revelou ainda que 87% dos professores acreditam que os fatores de risco estão relacionados ao trabalho.
Para Felippe Veiga, advogado que trabalhou na gestão anterior do Sinsej, os servidores públicos serão os mais atingidos. “A partir da reforma proposta, todos terão que trabalhar um prazo muito maior, além de se aposentar com maior idade.
Segundo Veiga, isso afeta diretamente a qualidade de vida dos servidores, que muitas vezes trabalham em ambientes impróprios, com patrões despreparados e sob ataque direto dos governos.
A título ilustrativo, basta analisar a grande quantidade de afastamentos médicos de servidores públicos decorrente de doenças relacionadas ao seu local de trabalho. Com a exigência de maior tempo de contribuição e idade, as condições de saúde tendem se agravar.
Os professores têm um tratamento que não é privilegiado. Esta é a visão do advogado Luiz Gustavo Assad Rupp. Em sua avaliação, ele revela que a classe possui uma aposentadoria com um tempo reduzido e este impasse existe em razão da condições que os profissionais estão expostos na rotina diária.
“O que existe hoje é uma imensidão de trabalhadores que, antes, de completar os 25 anos, são remanejados porque não têm mais condições de saúde para continuar exercendo a atividade de magistério. A reforma prejudica muito mais esses profissionais”, explica.
Na avaliação da Gerente de educação, Cristiana Poltronieri Ziehlsdorff, para que a reforma funcionasse o governo deveria ter uma alteração maior a nível de legislação. “O professor precisa ter condições de trabalho, e quem acaba perdendo pela falta de preparo daqueles que deveriam estar entusiasmado são os alunos”, pontua.
Regra muda tempo de serviço
Para pedir a aposentadoria por tempo de serviço, o servidor pode optar pela nova regra chamada 86/96 que representa quantos pontos serão utilizados para o cálculo da soma de idade e o tempo de contribuição. Sendo 86 pontos para mulheres e 96 para homens.
A norma foi atualizada desde 31 de dezembro de 2018 e vale até o ano de 2026, quando, a cada dois anos, os pontos irão sofrer um acréscimo até que a soma para as mulheres atinja 95 pontos e 100 para os homens.
Na prática, uma pessoa de 50 anos teria que ter 50 anos de contribuição para adquirir a aposentadoria e servidores com 70 anos anos de idade poderá solicitar, desde comprovados 30 anos de contribuição.
Quem está a dois anos de cumprir o tempo de serviço pelas regras atuais poderá receber o benefício, desde que o educador tenha cumprido o tempo mínimo estipulado pela pasta – 30 anos, se mulher, e 35 para os homens.
Apesar disso, os trabalhadores deverão pegar o chamado “pedágio” de 50% sobre o período que ainda falta para se aposentar. Ou seja, quem estiver há um ano para encerrar o tempo de contribuição deverá contribuir com a previdência por mais seis meses.
Faltando dois anos, o contribuinte terá que pagar um ano de pedágio, desta forma vai totalizar ao total três anos de trabalho.
Relator propõe mudanças
Uma nova série de modificações propostas pelo deputado Samuel Moreira (PSDB) estabelece algumas série de mudanças realizada em uma comissão especial do dia 13 de junho.
Entre elas, o parecer modifica uma nova regra de transição para os servidores públicos. A nova proposta defendida por Moreira, prevê que os servidores se aposentam com integridade nos salários.
A idade mínima também seria menor, sendo 57 anos para as mulheres e 60 para os homens, mantendo o tempo de contribuição de 30 anos, desde que os professores pagam um pedágio de 100%.
Ou seja, se faltar um ano para se aposentar, os professores irão precisar contribuir com mais dois anos.
Na prática, uma mulher que tenha a idade mínima mas tenha 28 anos de contribuição quando a lei entrar em vigor vai ter que contribuir mais dois anos para completar 30 anos e mais dois anos de pedágio.
Mudança nas alíquotas
Uma outra mudança proposta no projeto será nas alíquotas. A proposta quer modificar a porcentagem de tributos de contribuição conforme as faixas salariais dos professores.
Para servidores públicos que ganham atualmente um salário mínimo de R$ 998, os impostos passarão de 8% para 7,5%.
Professores que recebem entre o valor mínimo de R$ 2 mil os tributos serão de 9%. Para os salários de R$ 3.000 a R$ 5.839,45, a alíquota vai ficar em 14%. Profissionais que recebem acima do teto estipulado, os tributos podem chegar até 22%.
“Eles precisam pagar uma alíquota menor para a previdência. Mas é o trabalhador pagando sozinho, não tem mais o empresário contribuindo com o dinheiro e nem o Estado”, pontua o economista Daniel Corrêa.
Segundo ele, a transição não comporta um caixa do Estado que sustente a aposentadoria daqueles que irão pegar a alteração do regime.
“As pessoas mais afetadas tendem a ter entre 20 e 40 anos. Ou seja, vai pegar boa parte da juventude que não está conseguindo contribuir por causa do desemprego”, avalia.
Segundo Corrêa, Bolsonaro e Paulo Guedes argumentam que a adoção do novo regime será facultativo para os trabalhadores. Entretanto, na opinião do economista, com 17 milhões de desempregados, todos os profissionais que entrarem como empregados terão a opção do patrão.
“A partir disso vai se estruturar um novo modelo de previdência. É excelente para os capitalistas, eles param de pagar as contribuições e o que era do caixa do Estado se torna lucro”, reforça.
Rotina prejudica ensino
Com 48 anos de idade, Angelita Nascimento não consegue se imaginar dando aula de Educação Física com mais idade. A situação se agrava ao ter que atender crianças hiperativas e com dificuldades de aprendizagem.
Em sua opinião, o profissional hoje em dia precisa ter um preparo físico e psicológico para atender as demandas.
Considerando ambos os sexos, a expectativa de vida subiu de 75,8 anos em 2016, para 76 anos, em 2017.
A carreira de Angelita Nascimento iniciou cedo. A joinvilense começou a lecionar aos 19 anos na rede pública para turmas do ensino fundamental e médio. No auge da sua forma física e mental, trabalhava com equipes masculinas e femininas de vôlei sem obter um retorno financeiro.
A carga horária de Angelita atualmente é de 40 horas semanais para atender centenas de alunos do 2º ao 9º ano.
“No início, a gente tem todo o gás, agora não. Tenho me dedicado a coisas que eu gosto de fazer e pretendo continuar a fazer depois de me aposentar”, relata. Parando com as aulas, a professora pretende se aprofundar mais nos projetos paralelos que possui.
Se as regras continuassem as mesmas, Angelita se aposentadoria com 25 anos de contribuição e 48 anos de idade. “Quando estava se aproximando do prazo para minha aposentadoria, tudo mudou, agora foi para 50 anos”, lamenta.
O Instituto de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Joinville (Ipreville) tem como finalidade assegurar aos seus beneficiários os meios imprescindíveis para sua manutenção em situações de incapacidade, idade avançada, tempo de contribuição, reclusão e morte.
Além de oferecer ao seus segurados ativos, inativos e pensionistas programas sociais, entre eles o Programa H, que abrange reuniões destinados aos que estão enfrentando a transição da pré-aposentadoria e a pós-aposentadoria.
Angelita, que iniciou no programa no segundo semestre de 2018, conta que quando faltar um ano para o funcionário se aposentar efetivamente, o instituto de previdência municipal dispensa os seus serviços uma vez por mês para fazer parte de um grupo, que conversa com psicólogos para ajudar a manter a mente saudável diante de sua rotina puxada.
“Eles tratam do nosso lado financeiro, como as contas estão, se está tudo organizado e se a nossa família está preparada”, explica. “No geral, as reuniões são os preparativos bem interessantes para nossa aposentadoria”, conclui.
Apesar de não estar por dentro das novas regras propostas, a joinvilense acredita que a nova mudança vai ser um grande tiro no pé dos trabalhadores.
Em sua opinião, o poder público não sabe a realidade que as escolas enfrentam para poder oferecer uma educação de qualidade aos alunos. Segundo Angelita, a estrutura e o salário que se paga hoje em dia é um dos principais fatores para a profissão não ser valorizada.
Além disso, muitos dos profissionais que entram no mercado não estão preparados para encarar a realidade. “Ainda não consegui entender por que nossa profissão se deteriorou tanto.
Antigamente era tão bem vista, era questão de orgulho ser um professor”, lamenta. Por mais que ainda não sejam o ambiente ideal, Angelita acredita que as escolas estão se esforçando para melhorar o ensino.
“Hoje, há colégios com elevadores, rampas acessíveis e aparelhos de ar-condicionados mas a parte emocional dos professores está instável.Muitos que estão entrando já vem saturados” lamenta, Angelita.
Nos últimos anos, os cursos em educação a distância (EAD) apresentaram maior crescimento no número de matrículas que os cursos presenciais. A Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) explica que um dos principais motivos da preferência dos brasileiros se deve ao valor mais baixo das mensalidades das formações a distância.
Para Angelita, pessoas que decidem ser educadores não deveriam frequentar faculdades EAD. “Como um aluno vai nadar e correr a distância?.São práticas, não tem como fazer assim”, reclama.
Na a avaliação da gerente de educação, Cristina Ziehlsdorf, a reforma da previdência vai trazer consequências “Com certeza teremos decadência maior do que estamos tendo na educação”.
Para Cristina, o professor, hoje, precisa estar situado em um ambiente que possibilite melhores condições de trabalho.
De acordo com Cristina, para que as novas regras da aposentadoria tivessem efeito é necessário ter uma nova alteração na legislação, e escolas com estruturas adequadas.
Enquanto isso não ocorre, a esperança dos servidores públicos é esperar os desdobramentos das medidas impostas pelo governo, caso as novas regras da aposentadoria sejam aprovadas.
Texto: Leonardo Koch e Yan Nero
Foto: Leonardo Koch e Lucas Borba
Conteúdo original do Primeira Pauta, edição 145 | Conteúdo produzido na disciplina de Jornal Laboratório, 7ª fase/2019