Memórias de uma noviça rebelde
A história da mulher que se casou com o comunismo
— Quem você pensa que eu sou? — perguntou Hercílio.
— Eu acho que tu és o comunismo — respondeu Lúcia, segura de sua afirmação.
Por um momento, Hercílio quis correr até chegar em outro país. Mas sua intuição disse para ele ficar e ouvir o que a garota tinha para dizer. Sentia que podia confiar nela.
Após uma longa conversa, tudo se conectou.
***
Lúcia Schatzmann é gaúcha do interior e, como tal, não dispensa um bom chimarrão no meio da manhã. Sentada na varanda de casa, em Balneário Barra do Sul, a poucos metros da praia, a mulher de 75 anos está sempre papeando. Suas histórias entretém amigos, vizinhos, parentes, conhecidos e também desconhecidos.
A escolha por morar pertinho do mar não foi acidental. “Eu gosto do mato, de conversar com os animais, até os insetos”, conta. Isso explica as plantas aéreas penduradas na parede, os temperinhos em caixas de papelão sobre um banco de madeira e um grande cachorro passeando pelo quintal.
Quem olha para Lúcia hoje, exibindo o rosto estampado com as marcas do tempo, não consegue nem imaginar as poucas e boas por que ela passou. Além de uma infância simples em Soledade, Lúcia teve que lidar com uma adolescência marcada pela opressão religiosa, a repressão do regime militar e a perseguição política.
Quando criança, ajudava seu pai a levantar toras de madeira para abastecer uma serralheria. Entre uma viagem e outra, observava a desigualdade social: casebres contrastavam com luxuosas mansões em sua cidade natal. Desde cedo, a garotinha rechonchuda de cabelos encaracolados já dava sinais de que seria uma mulher forte, daquelas que não têm medo de enfrentar nada nem ninguém para defender suas ideias.
Em uma tarde de sábado, bateram à porta da casa da família Schenato duas freiras, que estavam em busca de moças jovens para levá-las ao convento servir a Deus. Sob a promessa de que o propósito da Igreja era ajudar os pobres, Lúcia, na época com 14 anos, aceitou o convite. Uma semana depois, ela e sua irmã Eronita estavam partindo do interior de Lages rumo a Florianópolis.
Depois de algum tempo trabalhando na cozinha da Congregação da Divina Providência, Lúcia, agora chamada de irmã Dulcemar, começou a estranhar e a questionar algumas coisas que aconteciam. “Certa vez, um mendigo veio pedir comida na igreja e a madre superiora mandou eu dar a ele apenas os restos de comida. Enquanto isso, senhoras bem vestidas comiam os bolos que a gente preparava”, lembra.
Outra questão que incomodava a jovem Lúcia eram as incessantes rezas durante a madrugada, para pedir que o político Leonel Brizola e seu comunismo não avançassem no Brasil. “E viva o Brizola!”, gritava a noviça rebelde em meio às rezas, mesmo sem saber direito o que era o tal do comunismo. Seu hábito preto cobria quase todo o corpo, com exceção do rosto, deixando à mostra apenas testa, bochechas, nariz, olhos, boca e queixo.
É claro que no convento não era permitido questionar nada. Por isso, Lúcia era castigada com frequência, até que decidiu sair o mais rápido possível dali. Conforme suas tentativas de fuga iam aumentando, a madre superiora ia piorando os castigos. Chegou ao ponto em que Lúcia era transferida a cada três meses para um convento diferente.
Chegaram ao absurdo de dizer para os pais de Lúcia que sua filha havia morrido durante uma missão religiosa na África, enquanto na verdade ela estava em um convento no interior do Paraná. Percebendo a gravidade da situação, Lúcia bolou uma nova estratégia. O plano era bom, só faltava colocar em prática.
Meses depois, a gaúcha deixou para trás a carreira religiosa, depois de pedir socorro a um ex-padre que estava de passagem no colégio em que ela estudava. Por meio dele, a garota finalmente conseguiu restabelecer a comunicação com os pais através de um telegrama e voltar para a casa da família.
Após a conturbada experiência no convento, que serviu apenas para atiçar a curiosidade da determinada Lúcia, sua vida sofreu uma segunda grande mudança. Mesmo contra a vontade da filha, Odorico Schenato enviou o currículo dela para a Papel Celulose Catarinense. Estava tão determinado a conseguir o emprego que, mais tarde, ensinaria Lúcia a aplicar injeções utilizando uma laranja. Dito e feito: Lúcia foi a escolhida.
No dia seguinte à aprovação, bem de manhãzinha, Lúcia e seu pai viajaram para Correia Pinto, a cerca de 30 quilômetros de Lages, onde estava localizada a fábrica da Papel Celulose Catarinense. Chegando ao setor pessoal para levar seus documentos, Lúcia foi prontamente atendida por um tal de Hercílio. Um a um, ela foi entregando seus documentos: identidade, certidão de nascimento, entre outros. Quando chegou a vez de passar suas fotos 3×4, o atendente caiu na gargalhada.
— Gente, olha aqui um urubuzinho! — exclamou Hercílio. Lúcia queria matar aquele homem desaforado que ousava zombar da sua foto com o hábito preto do convento.
Os dias passaram e o petulante Hercílio acabou se transformando em um grande galanteador. Ele estendia a mão para Lúcia subir no ônibus, sentava-se ao lado dela para conversar e a presenteava com chocolates. Quem não gostava muito disso era Domingos, irmão de Lúcia e secretário pessoal de um dos “chefões” da Papel Celulose Catarinense. Domingos nutria algumas desconfianças em relação ao amigo da irmã.
Certo dia, Hercílio mandou entregar um bilhete para Lúcia.
— Estou à procura de uma mulher que seja a minha companheira de luta e de trabalho. E eu simpatizo muito contigo. Quer namorar comigo?
Apesar do mistério que envolvia a vida de Hercílio, Lúcia sentia que estava a um passo de descobrir o que era o comunismo que tanto a intrigava, desde que deixou o convento. Como não era de correr, aceitou o pedido de namoro. Mais tarde, ela descobriria que Hercílio Linhares Figueiredo era na verdade Edgar Schatzmann, natural de Joinville, que estava foragido da polícia por ser comunista.
E foi assim que os dois resolveram se casar. Era um belo pretexto para conseguir fugir sem que os pais de Lúcia soubessem. Ao invés de irem para Porto Alegre, onde supostamente moravam os pais de Hercílio, foram para Itajaí. Em pleno 6 de janeiro, Dia de Reis, Lúcia dava seu segundo sim para Edgar e se tornava a senhora Schatzmann.
Dava-se início a uma longa união, que enfrentou sempre firme os dolorosos anos da ditadura e permanece sólida até hoje, quase cinquenta anos depois. Se, no passado, Edgar, que na verdade era Hercílio, tinha dúvidas se podia ou não confiar em Lúcia, o presente mostra que ele não poderia ter tomado melhor decisão quando decidiu abrir o jogo sobre sua verdadeira identidade. Sua intuição estava certa.
Apesar da união estável, que gerou duas filhas, atualmente Edgar e Lúcia moram em casas separadas, prova de que o amor supera a distância. Enquanto ele tem seus projetos em Joinville, Lúcia toca sua vida do jeito que ela sempre quis: sentada à varanda com um chimarrão na mão, papeando com as pessoas, os animaizinhos e as plantas.
Perfil: Marília Oliveira
Foto: Arquivo Pessoal/Lúcia Schatzmann
Versão completa do perfil publicado no Primeira Pauta Impresso, Edição 145 | Disciplina: Jornal Laboratório, 7ª fase/2019.