Prostituição vivida na pele
Mais de 40 milhões de pessoas vivem em situação de prostituição no mundo. A exploração sexual movimenta mais de nove bilhões de dólares, perdendo apenas para o mercado da arma e do tráfico. Cerca de dois mil pontos de exploração sexual estão espalhados pelo Brasil. Quase 20% dos municípios vivem essa realidade. O país com maior exploração sexual na América Latina é o nosso. Cerca de 75% dessas pessoas são mulheres entre 13 e 25 anos. E 90% delas estão ligadas a cafetões.
Esses dados, apresentados dessa forma, não parecem trazer novidade alguma em relação a profissão mais antiga do mundo. A prostituição acompanha o desenvolvimento dos povos há séculos e, até hoje, falar sobre isso ainda parece crime. Assim como Marcelo Canellas apontou que o Brasil que come não enxerga o Brasil faminto, quem não se prostitui, não vê a prostituição.
De cabelos lisos e longos, a mãe de duas meninas já viveu na pele a necessidade de se virar sozinha no mundo. Yasmin Pereira* se prostituiu por cerca de sete anos, entre os 16 e 23. Hoje, anos depois de viver essa realidade, ela conta em detalhes momentos que nunca vai esquecer. O brilho no olhar revela o orgulho por ter “superado” a prostituição, já que ela garante que não deseja que ninguém viva essa realidade. “Eu entrei na prostituição porque sai muito cedo de casa, morava de favor com uma amiga, mas só tínhamos arroz e água na geladeira, não tinha o que fazer, procurei diversos empregos e não consegui”, explica.
A menina, na época, precisou sair da casa da mãe por desentendimentos e, no anseio de ter uma vida mais cômoda, ela descobriu uma agência de modelo. No começo, era como um emprego normal, de fotos e presença em eventos, mas aos poucos a situação foi mudando. “Num dos eventos que a gente fez, a dona da agência nos confessou que os clientes que contratavam a gente para os eventos também queriam sair com as meninas.” Quando descobriu, a sensação foi de espanto e negação, porém, ao repensar sua realidade, Yasmin aceitou a proposta. “O pai da minha amiga era alcoólatra, batia nela na minha frente e não nos restou outra saída, passamos muita fome, a bebê da minha amiga não tinha leite e ao pensar que chegaríamos em casa e não ia ter nada, nos deixamos iludir pela dona da agência”, relembra.
Diferente da prostituição de rua ou de boate, Yasmin, na época, saia apenas com dois clientes fixo. Eles bancavam apartamento, carro e o conforto da menina. Nesse meio tempo, outras oportunidades surgiram, como a mudança para uma cidade maior, para trabalhar numa boate de luxo no Rio Grande do Sul. Com passagens pagas e a garantia da mulher de que a realidade seria diferente, Yasmin e a amiga se mudaram.
Típica cena de novela das nove, quando chegaram lá, perceberam que não era nada do que havia sido prometido. A garota ficou chocada com o contraste entre o luxo e a miséria do local. A boate era frequentada pelos mais ricos e poderosos da cidade, de jogador de futebol a juiz, porém, a casa que abrigava as meninas recebeu o apelido de Carandiru. O quarto sem janela e pouco espaço, não tinha tranca e segurança para proteção dos objetos pessoais de cada garota ali. Além disso, todos os custos iniciais para chegar a grande metrópole estavam anotados, esperando programas que os pagassem.
Numa bola de neve sem fim, as dívidas iam crescendo, as exigências e a prisão onde viviam também. Yasmin podia morar no lugar, mas pagava cada refeição, gasto com salão de beleza – onde ia acompanhada de segurança para não fugir – e todas as outras necessidades, como roupas que a dona do local exigia. Cada programa, que custava em média 500 reais (ou mais), era dividido meio a meio, uma parte para a dona e outra para a prostituta, mas no final, tudo ia para o bolso da dona, que aproveitava o dinheiro para ir “quitando” a dívida das garotas.
Yasmin pensou que aquilo nunca teria fim, mas aos poucos foi encontrando alternativas para se livrar da prisão que vivia. Para cada cliente que conseguia e sentia confiança, relatava o caso de exploração e pedia um dinheiro por fora. Juntou dinheiro, escondeu da mulher e decidiu dar um basta naquela situação. Denunciar não podia porque o principal juiz da cidade era o cliente vip do local, mas pegou suas malas e pediu para ir embora reencontrar a família. Com o dinheiro que guardou, pagou sua dívida e da amiga e procurou um lugar mais calmo e pequeno.
Assim que chegou em Santa Catarina, começou a morar com o pai e ir em busca de emprego. Mas além de todas as dificuldades, o preconceito precisava ser vencido. Já mãe de uma filha e sem estudos, ninguém abriu portas para ela. “As pessoas olham com aquele olhar carregado de preconceito, ‘não, isso aí era da zona, não vou arrumar emprego’, assim ficamos sem opção.” Com uma filha para criar e sem querer ver a pequena passando necessidades, a mãe trabalhava à noite como prostituta, enquanto uma babá cuidava da neném no hotel. Durante o dia, passeava com a menina pela cidade, chegava 19h30 e tinha que voltar para sua realidade.
E entre tantas histórias, na cidade de interior, a menina trabalhava de forma mais “livre”, podia sair do local durante o dia, recebia a quantia de dinheiro combinada com a dona e conseguia bancar uma realidade melhor para a pequena filha. “Essa última vez que trabalhei assim era numa boate, então os caras nos pagavam bebidas e conversavam, se quisessem algo a mais, era pago a parte também. Os programas duravam no máximo uma hora e tinham vezes que eu só ficava concentrada no relógio, querendo que o tempo passasse o mais rápido possível, depois corria para tomar banho e me limpar.”
Algumas vezes os programas aconteciam com sorrisos e outras com lágrimas. Beijo na boca, segundo a ex-garota de programa, era mais íntimo que sexo. “Sexo é mecânico, no beijo tinha risco de se apaixonar, então era muito raro acontecer.” Ela viveu como prostituta nessa cidade por mais ou menos um ano, depois conheceu seu marido, largou a prostituição e seguiu sua vida. “Vendo isso de fora, consigo dizer que é uma perda de tempo, mas entendo, porque é um dinheiro fácil, eu começava uma noite com 150 reais e terminava com mil, onde eu ia ganhar todo esse dinheiro aqui fora?”
Hoje ela conversa com as cunhadas, sobrinhas e filhas sobre o assunto. Se orgulha de ver todas seguindo outro caminho, tendo oportunidades que ela não teve. Ainda quer voltar a estudar e recuperar o tempo que acredita ter perdido. Aconselha diariamente a irmã, Ana Pereira*, que vive em situação de prostituição.
Na mesma boate em que a irmã trabalhou há mais de sete anos, Ana a frequenta diariamente e realiza programas. Ela possui uma deficiência auditiva e de fala e até hoje não conseguiu encontrar um emprego formal que a aceite. Quando completou 18 anos, amigos a convenceram de que ir para a boate poderia ser uma forma de diversão. “Num primeiro momento eu ficava lá, observando e bebendo às vezes. Depois os caras começaram a chegar em mim e vi ali uma oportunidade de conseguir me manter.” Assim como a irmã mais velha, a garota relata momentos da profissão que a vida escolheu para ela.
Às vezes sai da cidade pequena, passa três ou quatro semanas fora em locais maiores, consegue um dinheiro mais rápido e retorna para sua origem. Gosta da onde mora, mesmo rodeada de olhares que a julgam diariamente, que não enxergam a pessoa por trás da menina de programa, que veem com maldade e fazem comentários preconceituosos. “Eu vejo como as pessoas me olham com nojo, sinto isso quando estou andando na rua, mas não ligo.”
Os valores, a casa, a dona do local e algumas meninas continuam as mesmas da época em que Yasmin ainda trabalhava lá. Hoje, ela conhece a realidade através de Ana, que relata ser um ambiente carregado de inveja e competição. “Eu já briguei e fui ameaçada lá dentro, já vieram com uma faca pra cima de mim, isso entre as mulheres, tem muita competição, é cada uma defendendo seu território”, explica Ana. Ela conta que preferia não estar nessa realidade, mas ainda não encontrou alternativa para conseguir sair da prostituição. A profissão, mesmo reconhecida como uma ocupação legal no Brasil, ainda não dá direitos a quem a exerce.
Projeto de lei deseja regulamentar profissão
O projeto de lei 4.211/12 (PL) que visa regulamentar a atividades das profissionais do sexo segue parado na Câmara dos Deputados desde 2013, um ano após ser apresentado na Casa. O último despacho ocorreu em maio do mesmo ano e a atual situação é de espera pela criação de uma comissão temporária para analisá-lo. No Brasil, a prostituição está no rol de ocupações da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) desde 2002, porém, sem a regulamentação da lei que permite o livre exercício da profissão, as prostitutas não podem usufruir de direitos trabalhistas e previdenciários, por exemplo.
O deputado federal Jean Wylls, do PSOL/RJ, apresentou o projeto em 2012 com o objetivo de possibilitar às profissionais mais direitos e dignidade em relação a prostituição, porém divide opiniões desde então. Na justificativa, anexada junto ao projeto de lei, ele afirma que “a proposta caminha no sentido da efetivação da dignidade humana para acabar com uma hipocrisia que priva pessoas de direitos elementares, a exemplo das questões previdenciárias e do acesso à Justiça para garantir o recebimento do pagamento”.
Além disso, o projeto levanta questões de exploração sexual e casas de prostituições. Em relação ao primeiro caso, a prática é proibida e ocorre quando há apropriação de 50% ou mais da renda da prostituta, o não pagamento do serviço contratado e a realização de trabalho a força mediante a grave ameaça ou violência. Em relação às casas de prostituição, que hoje são ilegais no Brasil, o projeto visa permitir o funcionamento, desde que nela não exerçam qualquer tipo de exploração sexual. O PL ainda traz como ponto necessário à aposentadoria especial aos profissionais do sexo que tiverem trabalhado em condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física há 25 anos, nos termos do artigo 57 da Lei 8.213/91.
Para Cynthia Maria Pinto da Luz, advogada do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Bráz de Joinville, não cabe somente discutir a viabilidade do projeto de lei, mas sim levantar o debate de que o corpo da mulher não seja um objeto para ganhar dinheiro. “A mulher pode fazer o que ela quiser com o corpo dela, mas sabemos que a grande maioria acaba comercializando o sexo pela falta de dinheiro, do desemprego, da desqualificação e das dificuldades que ela tem para viver”, argumenta.
A advogada acredita que não será um projeto de lei que vá resolver o problema da objetificação do corpo feminino, mas que deve-se lutar por uma sociedade justa e sem exclusão social. “Se a mulher quiser ter relações sexuais de forma permanente e contínua com quem ela quiser, isso é um direito dela, mas a prostituição não vai se resolver com a regulamentação, seria melhor lutarmos para modificar a sociedade, onde mulheres tenham direito ao trabalho igual aos homens, ganhando o mesmo pelo mesmo trabalho desenvolvido, com direito à creche, e tantas outras condições.”
A ativista feminista Jéssica Michels também não concordava com o projeto de lei, porém, há dois anos conheceu o putativismo, que é o ativismo das mulheres prostitutas. “Conhecer essa realidade me fez ter mais empatia sobre a causa e repensar meu posicionamento perante o projeto de lei, apesar de ainda encontrar alguns problemas no texto apresentado pelo Jean.” Ela acredita que a prostituição no Brasil é algo muito precário e merece atenção, mas ser contra o projeto não vai alterar essa realidade. “Enquanto a gente não conseguir resolver essas questões de gênero que nos aprisionam, devemos garantir os direitos básicos para essas trabalhadoras sexuais que estão na rua, local que não garante segurança nenhuma para elas.”
Já Karoline Pereira dos Santos, também ativista feminista, é contra o projeto de lei, pois acredita que a prostituição começa desde cedo e regulamentar a profissão para maiores de 18 anos não iria resolver o problema. “Existem diversos casos de abuso, várias mulheres e transexuais morrem, então essa proposta não deveria nem ser cogitada como lei, já que é um sistema de exploração e de estupro muito grande.”
Divulgada pelo Nexo e publicada na revista científica “World Development” no começo de 2013, a pesquisa “A legalização da prostituição aumenta o tráfico de pessoas?” analisou o caso de 150 países e concluiu que “países onde a prostituição é legal têm uma quantidade maior de tráfico humano reportada”. Yasmin Pereira acredita que, num mundo sem oportunidades para as profissionais do sexo, seria importante dar direitos e o mínimo de dignidade a essas pessoas. Já sua irmã, Ana Pereira, acha que, com a regulamentação da profissão, o número de prostitutas pode crescer, já que serviria de incentivo para as profissionais. Mas os problemas da prostituição ultrapassam a fronteira profissional, atingindo diretamente a saúde das mulheres.
Saúde pública é preocupação entre prostitutas e município de Joinville
De acordo com dados divulgados em 2013 pelo jornal O Estado de São Paulo, a cada dez pessoas soropositivos, vírus que causa a Aids, uma é prostituta. As doenças sexualmente transmissíveis são parte das preocupações das pessoas que se prostituem, já que o risco se torna maior nessa realidade. Uma pesquisa realizada por uma equipe de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP) de 2013 aponta que cerca de 92% das mulheres profissionais do sexo tem conhecimento sobre o HIV. Dessas, cerca de 80% sabia informar a pesquisa que o uso de preservativo durante as relações sexuais protege da infecção.
Em Joinville, a Prefeitura Municipal informou que não possui registros e dados sobre essa população, porém, na unidade de Vigilância em Saúde e Centro de Aconselhamento e Testagem (CTA), existe distribuição de preservativo e exames que podem ser feitos para prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). A sanitarista e diretora do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Brás (CDH) Tânia Maria Crescencio acredita que falta um diagnóstico por parte do serviço público da cidade nessa área, pois isso facilitaria a atuação dos servidores com o público-alvo. “Acredito que muitas atuações deveriam mudar, às vezes chega-se nesse público com um olhar sanitário, de querer enquadrar essa população e isso espanta.”
A especialista acredita que a cultura joinvilense pesa na hora de falar sobre sexo e DSTs. “Temos uma visão de que educação em saúde sexual deve ser algo micro, muitas vezes quase escondida e isso dificulta o próprio trabalho, porque não falar sobre isso nos leva a atuar em casos mais graves e complicados, e não na prevenção.” As nossas personagens, Yasmin e Ana Pereira, que relataram suas histórias na prostituição, afirmaram nunca ter feito sexo sem camisinha enquanto trabalhavam. “Eu sempre me preocupei muito com isso e me cuidava, mas é claro que existem mulheres que não usam e não sabem o risco que estão passando”, explica Yasmin. Elas contam ainda que todo mês uma agente de saúde vai à boate, para levar preservativos e realizar conversas e exames preventivos.
Por: Maria Luiza Parisotto