Mídia não explica se foi greve ou locaute
Há mais de uma semana, a sociedade brasileira foi impactada por um movimento que começou a partir de entidades que articulam os motoristas de cargas autônomos (Abcam – Associação Brasileira de Caminhoneiros) e, em menos de três dias, já ocupava as principais rodovias do país. Um “furacão rodoviário” que deixou as principais empresas de jornalismo reféns de um único enfoque: com pequenas variações, a mídia hegemônica brasileira tratou o fato como “greve”, supondo que havia ali um típico movimento de trabalhadores.
A questão de fundo permanece em aberto: afinal, qual foi a força política que, em poucos dias, teve o poder de paralisar o país? A julgar pelos principais jornais diários (O Globo, Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo) e o mais influente telejornal (Jornal Nacional/TV Globo), a pergunta ainda carece de resposta à altura do desafio jornalístico e político.
Ao longo da semana, a pauta da paralisação dos caminhoneiros e das empresas de carga foi tomando conta do cenário político e se transformando num acontecimento de dimensões nacionais, invadindo a vida dos cidadãos comuns que precisam de transporte coletivo, remédios, atendimento médico, alimentação e outros gêneros de primeira necessidade.
Com efeito, a hipótese de locaute só chegou para valer cinco dias após o início dos mais de 500 bloqueios na malha rodoviária nacional. E veio pelas mãos das jornalistas Raquel Landim, Thaiza Pauluze e Mariana Carneiro, da Folha de S. Paulo, que escreveram: “Da frota regularizada de 1,76 milhão de veículos de carga que circulam no país, o caminhoneiro autônomo responde por pouco mais de um terço –37% do total, conforme dados da ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre). Transportadoras privadas e cooperativas respondem por 62% do setor”. Não haveria possibilidade de o setor autônomo, por suas próprias pernas, bloquear as estradas e paralisar a economia nacional com essa força registrada. E foi justamente a rapidez que começou a despertar as primeiras suspeitas de prática do crime de locaute das grandes transportadoras, que também reclamavam da política de preços da Petrobrás.
Resumo da ópera
Um olhar comparativo entre Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo, três dos maiores diários do país, revela que prevaleceu o tom oficialesco, a falta de apuração, uma subavaliação da dimensão que o movimento poderia alcançar (desinformação estrutural), em 72 horas após sua deflagração, na manhã de 21 de maio.
Parte da cobertura trôpega se deveu a dois fatores nas redações: erro de avaliação editorial e ausência de informações do movimento grevista. De um modo geral, jornalistas também não acreditaram que a ameaça de parar o país fosse se concretizar. Jornalistas têm que tomar decisões a todo o momento e nem sempre é fácil determinar que fatos devem ter prioridade de cobertura sobre outros. Se as redações tivessem percebido a calmaria que antecede a tempestade, talvez tivessem se preparado para a tormenta…
O segundo fator que fez a cobertura derrapar parece ter sido o fato de que os jornalistas ficaram fora do circuito das trocas de mensagens dos grevistas, andando às cegas. É claro que repórteres usam aplicativos como o WhatsApp e isso lhes dá agilidade e rapidez, mas a natureza fechada dos grupos alija os jornalistas de muitas trocas de informação.
Os três mais importantes diários do país, com dezenas de repórteres mobilizados nesta cobertura ficaram devendo algumas respostas à sociedade: Qual foi a força política que parou o país? Greve ou locaute?
Cobertura do JN pega no tranco
Dizer que a greve mobilizou batalhões de repórteres é lugar-comum, mas basta contabilizar a ocupação dos espaços midiáticos pelo tema para perceber como as redações foram acordando sobressaltadas ao longo da semana. Para se ter uma ideia, apenas um dos telejornais da TV Globo dedicou mais de duas horas de material em seis dias de cobertura! E o Jornal Nacional não é qualquer vitrine, mas o produto jornalístico de maior audiência da emissora. Entre a segunda (21) e o sábado (26), foram exibidas 34 matérias, resultando em 128 minutos e 45 segundos.
A edição da sexta (25) do Jornal Nacional, por exemplo, quase anunciou o fim do mundo e trouxe impressionantes onze matérias em mais de 40 minutos sobre a greve. Na edição, Temer informou que forças federais desobstruiriam as estradas, havia risco para o funcionamento de hospitais em diversas partes do país, e a Petrobras havia “perdido R$ 50 bilhões” em valor no mercado. Repórteres mostravam os dramas pessoais de quem saía à caça de gasolina, e que 40 mil toneladas de carne deixavam de ser exportadas naqueles dias. Imagens registravam filas infinitas ocupando pistas no Rodoanel na capital paulista e o Congresso Nacional vazio, apesar das medidas anunciadas pelo governo.
Apesar da alta octanagem política de interesses diversos, da lentidão do governo e seus aliados em contornar a crise, o JN ainda deu generosos tempos aos ministros e seus insistentes “avanços nas negociações para normalizar a situação”. Em uma semana de cobertura, o assunto ganhou uma dimensão de efetivo alarme social. O Jornal Nacional despejou a crise na sala dos brasileiros, mas não chegou a riscar um palito de fósforo sequer na direção do governo.
Por Samuel Lima e Rogério Christofoletti, Professores de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadores no objETHOS – Observatório da Ética Jornalística. A versão completa está disponível no site do Objethos.