Militarização está longe de ser a saída
Plano do governo que aumenta o número de escolas militares no país parece não ser eficaz à realidade da educação brasileira
Era 1963, quando trabalhadores rurais adultos foram alfabetizados em 45 dias no pequeno município de Angicos no Rio Grande do Norte. O feito foi tão chocante que gerou repercussão por parte da imprensa nacional e até internacional, que colocaram em destaque nas manchetes do dia seguinte o autor dessa proeza quase que milagrosa, tendo em vista a situação precária em que vivia, e ainda vive, o nordeste brasileiro.
Foi quando Paulo Freire passou a ser reconhecido no cenário educacional mundial como referência através do seu método de alfabetização de adultos. Além disso, Freire acreditava em uma educação libertadora, em que não basta apenas ser ensinado, é preciso aprender a leitura crítica do mundo para que assim seja possível a compreensão de uma realidade social e política. Para ele a essência da educação é emancipatória e autônoma “Ninguém luta contra forças que não entende; ninguém transforma o que não conhece” e também “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”, redigiu Freire em seu livro chamado “A Mensagem de Paulo Freire – Teoria e Prática da Libertação”.
Cinquenta e seis anos depois o que parecia ser uma esperança à educação brasileira, e um modelo a ser seguido por universidades mundo afora, é visto com desdém aos olhos do atual presidente da república, Jair Messias Bolsonaro (PSL), e toda a equipe responsável pela nova administração do Ministério da Educação (MEC).
Enquanto ainda pré-candidato à presidência, em agosto de 2018, Bolsonaro falou durante um encontro com empresários no Espírito Santo que implementaria medidas para eliminar Paulo Freire da metodologia de ensino das escolas públicas. Segundo ele, a influência do educador gera pensamentos marxistas e o pensamento crítico atrapalha o desenvolvimento dos estudantes. “Temos que debater a ‘ideologia de gênero’ e a escola sem partido. Entrar com um lança-chama no MEC para expulsar o Paulo Freire lá de dentro. Os alunos de 15 anos já não sabem nem fazer regra de três, não sabem nada de Física, Química e Matemática. Por outro lado, eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com pensamento crítico. A educação tem que ser mais objetiva”, argumentou o presidente durante a palestra.
Para o diretor geral da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) de Joinville, José Fernando Fragalli, o pensamento crítico não é algo ensinado aos alunos, mas uma decorrência do aprendizado que o aluno faz escolhendo os seus autores prediletos, a sua linha política, filosófica e, enfim, científica.
O diretor da universidade ainda acrescenta que uma educação de qualidade tem muito mais a ver com a técnica e o preparo dos professores do que com a objetividade. “Eu particularmente não acho que a educação tem que ser assertiva, ela tem que ser de qualidade e a qualidade tem muito a ver com técnica, com a percepção do mundo do estudante, com a compreensão do mundo da escola e a assimilação do conteúdo que o professor vai ministrar. Talvez a objetividade entre aí, mas até chegar a objetividade você tem que ter percorrido a psicologia da educação, ter percorrido a questão das escolas, normais e leis e a questão do conteúdo”, explicou Fragalli.
Apesar de Paulo Freire ter sido declarado o patrono da educação brasileira em 2012, seu legado já não é mais citado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino infantil e fundamental aprovado no Conselho Nacional de Educação (CNE) no final do ano passado. Seu trabalho teve uma grande influência nas escolas públicas do país antes do golpe civil-militar de 1964, sendo uma referência para educadores do Brasil inteiro até hoje. Ainda assim, desde o período eleitoral no segundo semestre de 2018, Bolsonaro cita Paulo Freire como doutrinador e assume uma postura mais rígida quando se fala em educação.
Em seu próprio plano de governo, intitulado Projeto Fênix, o presidente não menciona em nenhum momento investimentos na área da educação. Ele apenas aponta que conteúdo e método de ensino precisam ser mudados. “Mais Matemática, Ciências e Português, sem doutrinação e sexualização precoce. Além disso, a prioridade inicial precisa ser a educação básica e ensino médio/técnico. É possível fazer muito mais com nossos recursos, é o nosso compromisso”, ressalta o documento.
Uma forma de realizar isso, de acordo com Bolsonaro, seria ampliar o número de escolas militares no Brasil. Tais instituições, inclusive, são as únicas que não sofreram com os cortes na Educação, anunciados no final do mês de abril pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub. O motivo é que essas unidades são ligadas ao Comando do Exército, cujo orçamento é vinculado ao Ministério da Defesa.
“Eu não acho que a educação tem que ser assertiva, ela tem que ter qualidade.”
Solução cara para o país
Durante o evento de comemoração aos 130 anos do colégio militar do Rio de Janeiro, em maio deste ano, Bolsonaro declarou que quer preparar ‘meninos e meninas’ para a quarta revolução industrial no país e para isso, quer construir um colégio militar em cada estado brasileiro. A meta, segundo o presidente, é implementar um em pelo menos em cada capital até 2020 e a ideia é que o maior colégio militar do Brasil seja no Campo de Marte, em São Paulo, onde essa possibilidade já havia sido discutida no passado.
Aumentar o número de escolas militares sairia caro ao país. Seriam necessários R$ 320 bilhões por ano para manter jovens em instituições de ensino militares, o triplo do orçamento do Ministério da Educação (MEC). Para que isso aconteça o governo gastaria R$ 300 milhões, no entanto o desempenho dos estudante de Colégios Militares é de fato mais elevado do que em escolas tradicionais, de acordo com os índices de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), isso justamente por conta do investimento para estas instituições.
Em 2019 o Colégio Militar Feliciano Nunes Pires tem ao todo cerca de 52 alunos
“Eles acatam as regras, o que em uma escola regular é bem complicado”.
Transição em escola de Joinville
Em Joinville, a escola de Educação Básica Osvaldo Aranha funciona há 60 anos e desde 2013 possui a maior nota no índice de desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A escola é uma referência no ensino municipal e possui uma estrutura ampla e muito bem conservada comparada a outras estruturas de escolas estaduais.
A escola Osvaldo Aranha poderia ser considerada uma metáfora do que vive a educação no Brasil hoje dentro desta transição, e desta promessa de uma educação menos libertária e mais patriota. Pela manhã, Osvaldo Aranha, mas a tarde Colégio Militar Feliciano Nunes Pires. Desde o ano passado, o colégio divide o espaço com a escola regular. Sem um aviso prévio, os diretores do Osvaldo Aranha foram comunicados de que terão que entregar a escola por completo aos militares até 2020. Para isso, a escola básica teve que cancelar os mais de 100 pedidos de matrículas que foram enviados para o início deste ano. Além disso, professores que foram contratados há mais de 15 anos serão obrigados a fazerem remanejamento até o final de 2019. Segundo uma funcionária do Osvaldo Aranha que não quis se identificar para evitar que a sua opinião comprometesse a relação com a escola militar, o Estado não teve esta preocupação e ainda acrescenta: “a escola militar teve um índice de reprovação bem alto e por isso os alunos estão ocupando os nossos espaços já durante a manhã para as aulas de reforço”.
De acordo com o sargento e diretor do Colégio Feliciano Nunes Pires, José Luís Cavassin, a rotina diária dentro da escola pode até ser similar às rotinas dos colégios tradicionais. As aulas começam às 13h30 e seguem até às 17h45. A carga horária é de 50 minutos hora/aula e segundo, o diretor, o que os diferencia das escolas tradicionais é apenas a grade curricular, já que tem um acréscimo de três matérias em relação ao que o MEC determina, sendo elas Educação Religiosa, Filosofia e IGP – Instruções Gerais da Polícia Militar. Nesta última, os estudantes aprendem a marchar, hastear a bandeira, reverenciar a nação, entre outras atividades relacionadas ao exército. Este formato de grade curricular é padrão nas escolas militares do estado. “A gente é adequado a Secretária de Educação, não optamos. Os colégios militares já possuem esta grade de ensino, isso é um padrão estadual desde o início; ensino religioso é uma aula, filosofia também é uma aula, assim como as IGP”, esclareceu o diretor e sargento.
Apesar de Cavassin ter citado apenas a grade como diferencial das escolas militares, ao que parece as diferenças vão além. Começando pela vestimenta dos alunos: pela manhã, adolescentes correndo pelo pátio da escola com roupas comuns de uso no cotidiano. O barulho durante o intervalo chega a ser ensurdecedor. À tarde, o silêncio é notório e poucos são os estudantes pelo pátio. Organizados e padronizados, todos são identificados por um uniforme social próprio da escola militar — são três uniformes diferentes no total.
Assim que chegam na escola, os alunos se reúnem no ginásio, onde uma sessão cívica ocorre. Todos se organizam em uma fila simétrica separados por turmas. A plenos pulmões, eles entoam o hino nacional, audível do ginásio até os portões da escola. Após o momento de patriotismo, um grupo é guiado por monitores até a entrada da unidade, onde são hasteadas as bandeiras do Brasil, de Santa Catarina e de Joinville. O ritual diário dura cerca de 15 minutos, quando oficialmente são dispensados para as salas de aula.
Outros aspectos que as diferenciam das tradicionais são as formas de ingresso. Para entrar existe um edital público, por meio do qual o estudante faz uma inscrição e depois realiza uma prova. Segundo José Luís Cavassin, existe um processo seletivo entre os alunos e é este edital que definirá as regras. A publicação dirá se é prova discursiva, de múltipla escolha ou de qualquer outra modalidade. “Eu não posso te adiantar como vai ser para esse ano, eu sei que a previsão é de 60 vagas para Joinville, por volta de quatro turmas. A gente tem como comportar um complexo aqui, mas teria que vir mais policiais”, previu o sargento sobre a próxima seleção. A equipe do Primeira Pauta solicitou que a escola nos enviasse o edital, a coordenação do colégio aceitou, no entanto dias depois nos retornaram informando que a direção das escolas militares de Santa Catarina, em Florianópolis, não autorizou a disponibilização do regimento e o Plano Comum Curricular da escola.
Outro aspecto que causa questionamento por parte da população é a rigidez, o diretor da escola militar de Joinville preferiu não se posicionar sobre esse assunto sugeriu que a equipe acompanhasse a rotina dos alunos para que fossem tiradas conclusões pessoais.
Nas salas, o silêncio e o respeito pelos professores também são características presentes. Neide Limas é professora de inglês em ambos os turnos. Segundo a professora, o comportamento é um grande diferencial das outras escolas e que por conta disso o desempenho em sala de aula é muito melhor. “Todos eles têm um celular, mas em nenhum momento da vida eu precisei proibi-los de usarem, então eu não me incomodo porque eles sabem que não é pra usar e na realidade eles acatam as regras, o que em uma escola regular é bem complicado”, explicou Neide. Métodos de ensino das escolas militares
O plano curricular de uma escola militar é muito semelhante com aquilo que estamos acostumados a ver nas escolas convencionais. O colégio Feliciano Nunes ainda disponibiliza aulas de reforço no contraturno, com o acompanhamento de uma psicóloga e uma psicopedagoga que auxiliam o aluno a entender o por que ele está indo mal na disciplina e o ajudando a criar uma rotina de estudos.
Para manter a organização e um padrão, todos os anos, no início do ano letivo, é lançado um calendário com as datas das provas e reuniões. Os alunos fazem uma prova por dia de cada matéria em uma única semana, como já pré-definido no calendário. São ao todo duas provas a cada trimestre, podendo o aluno fazer uma terceira prova caso não tenha atingido a nota mínima.
Os uniformes padronizados mudam para cada rotina de atividades no colégio. Para as aulas de Educação Física é um uniforme específico que os alunos já vêm vestidos de casa. Eles ganham o Plano Curricular no começo de cada ano letivo para poder saber os dias exatos para o uso de cada uniforme. E para ajudar na observação e manter o padrão, existem dois monitores de turma e corredores, que são dois cabos militares, que auxiliam na supervisão.
Do que o Brasil precisa
Durante o período eleitoral, no segundo semestre do ano passado, Bolsonaro parecia bater na tecla do combate à doutrinação dentro das salas de aula. Segundo ele, esta seria uma questão crucial para o desenvolvimento do Brasil. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017 eram 11,7 milhões de analfabetos no país, 25 milhões de jovens entre 15 a 29 anos que desistiram da graduação devido à necessidade de trabalhar e 2 milhões de estudantes que estão atrasados para iniciar o ensino médio. Dados alarmantes que não ganharam muita atenção nos discursos do novo presidente. Ao lado de segurança e saúde, a educação era tratada como uma das prioridades no plano de governo. Na seção Linhas de Ação, o plano chega a mencionar que é “necessário dar um salto de qualidade na educação com ênfase na infantil, básica e técnica, sem doutrinação”.
QUIZ: Quais destas matérias pertencentes a Base Nacional Comum Curricular você retiraria do Ensino Médio?
Texto: Viktória de Matos e Mayara Oliveira
Foto: Gabriela Bittencourt
Conteúdo original do Primeira Pauta, edição 145 | Conteúdo produzido na disciplina de Jornal Laboratório, 7ª fase/2019