Vamos a Cuba?
Na busca por liberdade e independência, a história de Cuba recomeça a partir da Revolução de 1959, liderada por Fidel Castro. No século XIX, o país pertencia à Espanha e recebeu ajuda dos Estados Unidos para conquistar a emancipação. Mas o apoio norte-americano teve um objetivo: o domínio sobre o território para usufruir de sua economia. Para não sofrer um novo controle, a revolução foi a única saída para Cuba alcançar a tão sonhada liberdade.
O reflexo da revolução trouxe investimentos para diversas áreas, principalmente na saúde, na educação e no avanço tecnológico. A saúde pública se tornou referência para outros países, como o desenvolvimento das vacinas da meningite e hepatite B, além do programa Mais Médicos que atuam em muitos países. Em relação à educação, Cuba investe e garante ensino desde as séries iniciais até a universidade, tendo universidade gratuita que atende aos estudantes das províncias de Cuba e da América Latina.
A população costuma ler muito, não é à toa a quantidade de livrarias espalhadas pela ilha e com livros muito baratos em relação ao Brasil. Cuba é um país com uma cultura diferente, que ainda remete muito ao passado com casas e automóveis antigos na área rural. É um país muito peculiar e causa certo estranhamento, pensamentos e ideias divergentes em relação a sua política e modo de levar a vida.Nada melhor do que conhecê-la um pouco por alguém que tem muitas histórias para compartilhar, a historiadora Valdete Daufemback.
Formada em História pela Universidade da Região de Joinville em 1990 e mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2000, Valdete Daufemback atualmente é professora na Faculdade Cenecista de Joinville, na Faculdade Ielusc e foi coordenadora do Projeto Jornal do Paraíso (uma iniciativa de jornalismo comunitário no bairro Jardim Paraíso), encerrado em 2018. Possui dois livros publicados e textos publicados em jornais e revistas. Fez parte do Comitê Científico do V Congresso Nacional de Educação da Rede Sinodal, em 2013.
A entrevistada possui uma ligação muito forte com o país. Segundo ela, a área rural relembra sua infância com carros antigos e uma vida mais pacata. Valdete costuma debater nas redes sociais e desmistificar ideias distorcidas sobre Cuba. No ano passado, em viagem a Cuba Valdete voltou com muitas histórias na bagagem, além de uma experiência humana enriquecedora. Parte dessas histórias você confere na entrevista.
Primeira Pauta: Após as viagens que você fez a Cuba, quais foram as impressões sobre o país que gostaria de destacar e desmistificar? E quais situações poderiam ser empregadas no Brasil?
Primeira Pauta: Cuba tem essa ligação forte com o passado, mas qual a realidade hoje?
Valdete Daufemback: Cuba para mim tem uma ligação muito grande com o passado. Os carros antigos dos anos 50 e 60 que estão lá são bem cuidados e estão disponíveis para o turismo. As pessoas cobram para usar como se fosse táxi ou apenas passeiam naqueles carros antigos. Existem charretes onde é possível passear. Para você andar no transporte coletivo você precisa ter a moeda deles, já que eles trabalham com dólar. A gente leva em euro e troca por CUC, a moeda do turismo. Então é muito barato você andar de ônibus. Eu entrei numa livraria e descobri por acaso que lá era uma livraria dos cubanos. Comprei muitos livros só com 1 CUC. Um livro que você compraria aqui e pagaria cem reais, lá você compra como se fosse quatro reais. É muito barato quando você fala em termos de aquisição de livros, consumo de bens culturais e museus. O que tem de mais caro e que não difere do Brasil é o lazer, os bares e toda a gastronomia. Varadero, por exemplo, é uma região habitada por norte-americanos e turistas. Há empreendimentos e uma praia maravilhosa com os hotéis sempre lotados por conta dos turistas. A economia deles é basicamente essa.
Primeira Pauta: A saúde pública de Cuba é modelo para a América Latina e até para outros países. Exemplo disso é o desenvolvimento da vacina de hepatite B e da meningite e o programa Mais Médicos que atuam em diversos países, o Brasil era um deles. Na sua opinião, a que se deve esse avanço? E o impacto que o Brasil teve com a saída dos médicos cubanos? Como funciona a saúde lá?
Valdete Daufemback: Em 1959, quando houve a revolução em Cuba, os norte-americanos foram expulsos e uma base socialista foi implantada. Cuba era uma colônia e foi o último país a se tornar independente da Espanha. No século XIX os Estados Unidos ajudaram Cuba a se tornar independente, mas como reflexo o governo americano acabou dominando Cuba. Para se livrar dos Estados Unidos, Cuba procura alternativas para tentar se sobressair: isso ocorre na medicina, área em que o país começa a estruturar a saúde, e a educação. Não investiram em armas durante a Guerra Fria, passando a investir em tecnologia, saúde e educação. Entendendo que se precisassem de uma saída preventiva, a carência não seriam hospitais, pois a saúde da população estaria garantida. E poderiam desenvolver vacinas. Os laboratórios são enormes e bem equipados, onde desenvolvem pesquisas em medicação preventiva da saúde. O equivalente ao SUS é uma política pública. Cada lugar tem uma unidade básica de saúde, não importa se é área rural ou na cidade. Tem vários hospitais, mas nem tanto como no Brasil, porque eles trabalham muito na prevenção. A medicação é toda feita no local e é gratuita. Quase não tem farmácia e as que existem são para os turistas.
Primeira Pauta: Falando sobre os Mais Médicos cubanos, como você avalia a importância da atuação deles no Brasil, principalmente nas regiões mais distantes, onde não há esses serviços regulares? Como você explica o contexto em que eles foram obrigados a sair do país?
Valdete Daufemback: O Brasil estava com sérios problemas de saúde nesses ambientes, porque os médicos basicamente se formam e não se sujeitam a ir para as áreas de risco. Os médicos cubanos possuem prática para atender, atuando na prevenção. Isso foi importante porque se envolveram com as pessoas. Não é simplesmente prescrever; uma coisa humana com o trabalho e as pessoas se sentem acolhidas. Nós visitamos algumas fábricas e, dentro de um espaço que visitamos, havia um casal da Bahia. Quando ela chegou viu o médico que atendia ela aqui no Brasil. O encontro foi tão interessante porque aquele casal de idosos se emocionou ao ver o médico. Esse carinho significa muito dentro de um processo de cura, dentro de um processo de saúde. Era um projeto que veio para suprir uma demanda e todas as pessoas que foram atendidas por um médico cubano falam de forma positiva. Os médicos saíram daqui diante de algumas declarações maldosas do presidente Bolsonaro antes mesmo de assumir a presidência. Por isso o governo de Cuba resolveu tirar os médicos do Brasil, visto que o atual presidente iria prejudicar os profissionais cubanos.
Primeira Pauta: Cuba completou 60 anos da revolução comunista. Você que esteve no país pode notar contradições, como luxo, pobreza e pessoas que passam fome? Que reformas são necessárias para melhorar essa situação de contradição?
Valdete Daufemback: Eu não percebi pessoas que passam fome, pois cada morador recebe alimento de acordo com as suas necessidades. Todas as pessoas recebem cesta básica com aquilo que precisa para passar o mês. Alguns reclamam dizendo que as cestas básicas não chegam até eles ou que o que recebem não é o suficiente. Existe trabalho, existe emprego e a população precisa se ocupar. Para falar de Cuba precisamos viver um pouco do país, pois o estilo é diferente, as maneiras, os lugares e as pessoas são diferentes. Os celulares estão começando a aparecer lá só agora. O wi-fi existe em poucos lugares, lá eles ainda vão para a praça para conversarem, para as crianças brincarem e é uma cultura diferente daqui. A vida deles é um pouco diferente, existem contradições. Essa contradição eu percebi entre o não consumismo e ao mesmo tempo o lixo plástico; é uma contradição muito grande para mim. Há lugares com grades porque alguns roubos começam a ser registrados, isso é outra contradição. Eu me apaixonei pelo sistema viário, as rodovias fluem bem, são equipadas; o asfalto ligando um lugar ao outro, eles aproveitam os lugares para fazer restaurantes e não devastam. Aproveitam muito as árvores, que têm uma importância para eles. Fui em alguns eventos embaixo de árvores; eles aproveitam todos os espaços, a água, o lago. Um local para as pessoas se sentirem bem durante o almoço ou jantar.
Primeira Pauta: O Brasil reconheceu o governo de Fidel Castro, formado após a Revolução Cubana em 1959. Em 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente, ele afirmou que pretende cortar relações com Cuba porque o país não respeita os direitos humanos. No que afetaria os dois países se o Brasil hoje cortasse relações com Cuba?
Valdete Daufemback: De alguma maneira, o Brasil já cortou relações com Cuba. Para Cuba não foi bom, visto que o Programa Mais Médico teve que ser retirado do país. Sentiram o baque na economia. De todo o dinheiro que os médicos ganhavam no Brasil, uma parte era destinada para suas respectivas famílias. Eles tinham essa nítida consciência da importância do programa, pois tinham estudado e eles precisavam devolver aquele dinheiro para o país. Para Cuba essa ausência do Brasil não foi muito importante, essa maneira do Bolsonaro se afastar de Cuba. Já o Brasil acaba perdendo com essa relação com o país. Os dois países têm uma cultura muito parecida, somos parecidos até no modo de alimentação com os cubanos.
Primeira Pauta: Em seu livro “A Ilha”, Fernando Morais fala que para participar da política do país deve ser filiado ao Partido Comunista, caso alguém faça política fora do partido ou seja contrário ao governo pode ser preso. Por possuir apenas um partido acaba dificultando a pluralidade de ideias e liberdade individual?
Valdete Daufemback: Só tem um partido (o comunista) e isso para mim já é uma contradição. Entendendo Cuba do jeito que é ameaçada constantemente pelo poder externo, talvez abrir para outros partidos seria o início de uma ruína. Para se candidatar à política é preciso passar quatro anos estudando sobre política e atuando na área para obter a formação. Depois desses quatro anos é entregue o diploma para participar da política se filiando ao partido, podendo concorrer às eleições. As eleições são para a câmara, é como se fosse aqui em Joinville, aqui nós temos vereadores, lá eles não tem. Líderes comunitários são escolhidos pela comunidade. Esses líderes se reúnem toda semana para entender o problema daquele grupo. Esse grupo se reúne, todos discutem os problemas e não levam o problema para a administração municipal, eles precisam levar a solução. Então a administração municipal decide se vai acatar ou não. Pensar em Cuba com o pensamento como o do Brasil é muito complicado e pensar no Brasil com o pensamento de Cuba é delicado.
Primeira Pauta: Durante os 60 anos em que a família Castro esteve no comando de Cuba, evidenciou-se uma economia planificada. Entretanto, em 2018, Miguel Díaz-Canel do Partido Comunista assumiu o comando do país e aliado a uma nova Constituição, aprovada pelos eleitores com quase 87% dos votos, demonstrou ceder maior liberdade econômica, inclusive privada, mas com limites. O reconhecimento da propriedade privada e o enriquecimento individual afetam de que maneira a sociedade cubana? A delicada situação da Venezuela, maior parceira econômica de Cuba, é fator determinante para as alterações na economia planificada?Valdete Daufemback: Cuba na verdade teve um período histórico bastante favorável, a Venezuela é uma parceira econômica, inclusive para a necessidade de petróleo. Cuba negocia também com o México. Esse presidente está dando uma abertura para nova constituição. É interessante que nessa nova constituição alguns valores sociais permaneceram. Ocorreu o plebiscito para debater sobre certas condutas que deveriam mudar, por exemplo, casamento homoafetivo e a sociedade não aceitou. Eles ainda são muito conservadores, é uma sociedade que viveu tanto tempo assim que ainda continua conservadora. A população é muito consciente, pois a necessidade que eles têm de continuar com a revolução, se ela não for dosada, mais tarde teremos uma Cuba com a economia planificada. Então é possível que Cuba passe para uma economia privada.
Primeira Pauta: O governo controla a saúde, a educação e a moradia no país. Você poderia contextualizar como funcionam esses serviços? Na sua opinião isso seria interessante de aplicar no Brasil?
Valdete Daufemback: A educação, por exemplo, é garantida e as crianças saem das escolas uniformizadas. Cada escola tem um uniforme diferente e elas andam na rua em grupo. E até mesmo nas universidades. Nós visitamos uma universidade que é a Havana. É uma universidade gratuita e na frente existe um prédio onde funciona um hotel, onde se hospedam todas as pessoas que vêm de fora. Tanto de várias províncias de Cuba, as pessoas moram nesses hotéis, como os que vão da América Latina que estudam lá. Por isso que eles mantém aquele prédio lá, aquele hotel que abriga jovens para mantê-los lá para estudar. As pessoas têm o estudo garantido desde as séries iniciais até a universidade. Acho que no Brasil teríamos algumas coisas para aprender, a ideia da saúde e educação ilimitada para todos, por exemplo. Eu acho que falta para nós esse olhar cubano, como uma vivência, uma experiência histórica, como um povo que teve toda a sua história, que teve uma escravidão, teve a ideia da colonização e está resistindo. Tem uma resistência muito grande. Tem uns valores culturais fundamentais na questão da sua história, na questão folclórica. Além de que é um povo que lê muito, tem muitas livrarias e uma população que passa muitas dificuldades.
Primeira Pauta: Na questão econômica, existe rotatividade de mão de obra? Como pode influenciar no trabalho e na economia do país?
Valdete Daufemback: Na década de 90 com o fim do socialismo tradicional que tinha na União Soviética, Cuba teve um baque econômico. Hoje podemos perceber que existem muitas empresas privadas lá dentro, 10% da economia vem da iniciativa privada e nem todos os funcionários são pagos pelo governo. O trabalho é mais informal. Nós conversamos com enfermeiras que relataram que estavam trabalhando há 30 anos e falta pouco tempo para aposentar. Nas empresas privadas eles têm uma outra lógica. Paladar é privado, de iniciativa privada, os demais são do governo, o governo passa inclusive a fazer licitação e pode até terceirizar; os hotéis por exemplo, podem entrar uma empresa ali e administrar, mas geralmente são por meio de licitação, as pessoas vão lá para cuidar, observar. Os impostos lá são muito altos, todas as pessoas pagam impostos, ninguém consegue burlar o imposto.
Reportagem: Destiny Goulart
Fotos: Divulgação
Conteúdo original do Primeira Pauta Impresso, Edição 145 | Disciplina de Jornal Laboratório, 7ª fase/2019.