Moradores do Boa vista não querem a construção da ponte Joinville
Texto por: Társila Elbert
Num primeiro olhar, o Boa Vista parece muito com as cidades do interior: vias de mão dupla, sem acostamento, são contornadas por casas de muro baixo e dividem o terreno com árvores que os moradores nem lembram como cresceram lá; mas recebem cuidados por serem bons suportes para as redes de descanso.
Na volta da Associação dos Pescadores, uma construção feita na beira do mesmo mangue que desenha todo o bairro, carros populares atravessam o asfalto em marcha lenta para não atrapalhar o grupo de crianças que corre ao lado, descalço, enquanto chuta uma bola amarelada.
No centro da rua Paramirim, onde fica o Bar do Pulga, boteco mais frequentado na região, o som das pedras de dominó se mistura aos festejos pela cerveja colocada no copo: um pequeno alívio para a exaustão do trabalho diário. Ali todos se conhecem pelo primeiro nome, todos dividem as mesmas histórias, todos construíram o mesmo lar.
É quinta-feira, 19h; famílias inteiras seguem em procissão para a missa. O ponto final é a Igreja Santa Luzia, moradora há mais de cinquenta anos na Rua Alcântara e vizinha da Rua Borja; a via que, na ponta colada ao mangue, abriga desde 1992 a Associação dos Pescadores. Sem registro exato do ano de batismo, a São Borja recebeu esse nome em homenagem ao Padre Francisco de Borja, grande incentivador das missões jesuíticas na América em 1.500 e bisneto do papa Alexandre VI, nascido Rodrigo de Borja, um cardeal que ficou famoso por ter e incentivar, o que era considerado pela igreja na época, uma série de comportamentos polêmicos.
E se a fruta não cai longe do pé, a Rua São Borja seguiu bem esse conceito. Assim como seus habitantes, comércios e instituições, mora nela uma das maiores controvérsias e, dizem alguns, expectativas que Joinville já teve: a base para a construção de uma ponte que irá cortar o mangue, ligando os extremos dos bairros Boa Vista e Adhemar Garcia.
Esse projeto, que teve sua primeira menção na década de 70 e foi aprovado pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável na época, prometia avanços na mobilidade entre os bairros da zona sul e leste do município para diminuir o trânsito em horários de maior movimento e desafogar a Ponte do Trabalhador; porém, nunca saiu do papel. Foi comentado novamente mais de 40 anos depois, em 2014, com obras avaliadas em R$ 40 milhões e que seguiram sem execução.
Em 2016 moradores do bairro Adhemar Garcia simularam, de forma irônica, uma cerimônia de inauguração da ponte, protestando pela demora na implantação. O governo do Estado respondeu que não possuía um valor considerável para custear o projeto, mas garantiu que a prefeitura ainda buscava financiamento por terceiros, porém sem data para o início das obras.
Dois anos se passaram até que, em 2018, a administração do município divulgou o valor final da infraestrutura de ligação entre o Boa Vista e o Adhemar Garcia: R$ 113 milhões, documentalmente enviados para a avaliação e aprovação da Secretaria do Tesouro Nacional, que foram negados logo em seguida. Entre os fatores desse veto estavam a instabilidade do terreno, que segundo estudos publicados pelo portal NSC TV não suportaria o aumento de trânsito regular, e também o abalo ecossistêmico. Essa preocupação foi motivo para o órgão responsável, na época a FATMA, Fundação de Amparo à Tecnologia e Meio Ambiente, solicitar um novo e mais aprofundado estudo sobre os impactos ambientais de uma construção de grande porte na região.
Cumpridas as solicitações o Senado Federal enviou, ainda em 2018, a aprovação no financiamento de crédito externo para a execução da obra com o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata). Nesse projeto os recursos iriam, parcialmente, para o financiamento do Programa Linha Verde Eixo Ecológico Leste de Joinville, que tinha a implantação da ponte entre os bairros Boa Vista e o Adhemar Garcia como principal objetivo. Resta agora aguardar as duas análises, da Procuradoria Geral da Fazenda e da Secretaria do Tesouro e, ainda mais importante, a licença ambiental que segue em processo no IMA, Instituto do Meio Ambiente, atual órgão responsável pela gestão ecossistêmica de Santa Catarina.
O objetivo da ponte
Para a administração do município, a obra batizada como Ponte Joinville contribuiria, e muito, na fluidez no trânsito entre a zona leste e as outras áreas da cidade, além de facilitar o deslocamento nos bairros Adhemar Garcia e Boa Vista pela Avenida Alvino Hansen e o binário nas ruas São Leopoldo e São Borja. Segundo o Plano Viário e o Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável de Joinville, a intenção está em viabilizar as conexões regionais dos municípios da região nordeste do estado.
Informações da prefeitura afirmam que em sua total extensão a ponte teria, aproximadamente, 800 metros de comprimento e 27,8 metros de largura, com espaços destinados à pedestres e ciclofaixa, considerados indispensáveis para a mobilidade urbana entre as zonas Sul e Leste; trajeto que hoje é feito pela Ponte do Trabalhador no bairro Guanabara ou pela região central. A administração também informou sobre a necessidade da requalificação de 1.520 metros de obras na Rua São Leopoldo, 70 metros nas Ruas Cardeal Câmara e General Góes Monteiro e 1,510 metros na Rua São Borja, que encabeçaria a ponte. A assessoria da prefeitura garante que não haverá nenhum impacto que prejudique as atividades rotineiras do bairro.
Opiniões divergentes
O sociólogo Charles Henrique Voos discorda dessa necessidade. Autor do livro Quem Manda na Cidade, que mostra os nomes por trás da especulação imobiliária na região, ou seja, os verdadeiros donos do planejamento urbano em Joinville, ele foi um dos responsáveis pela Pesquisa Origem e Destino: um projeto realizado pela prefeitura do município para a elaboração de estudos detalhados sobre o perfil de mobilidade dos habitantes. Publicada anos atrás, essa pesquisa mostra dados bem diferentes dos que os moradores da região costumam ouvir.
De acordo com o estudo, que levou pouco mais de um ano para ser concluído, os moradores da zona sul, em sua maioria, não frequentam a zona leste; e tampouco utilizam carros próprios para sua locomoção. “Essa ponte não se justifica, nós não temos tantos deslocamentos assim. E além disso eu não sei se existe, realmente, todo esse clamor popular por uma ponte naquela região” diz o pesquisador.
Charles defende a teoria de que a espera pela ponte, principalmente quando vista na perspectiva dos moradores do Adhemar Garcia, é apenas uma coalizão de consenso espalhada pela comunidade. “Nós temos aqui uma repetição de informações até que virem ideias aceitas pela maioria: é o que eu chamo de coalizão de consenso. Joinville é uma fábrica delas. A população repete ‘a ponte é importante, a ponte é importante’ mas não sabe o porquê, e depois de certo tempo se vêem reproduzindo esse discurso sem ao menos entender essa relevância.”
O transporte urbano é outra questão comentada pelo pesquisador. Sancionada pela presidente Dilma Rousseff há quase oito anos, a Lei nº 12.587, conhecida como Lei da Mobilidade Urbana, exige que municípios com população acima de 20 mil habitantes elaborem e apresentem um Plano de Mobilidade Urbana com a intenção de programar, de forma mais organizada, o crescimento das cidades. A Lei determina que estes planos priorizem os deslocamentos não motorizados e os serviços de transporte público coletivo, o que, afirmado por Charles, não será feito com a construção da ponte, embora esteja comprovado em sua pesquisa que contabilizam uma parcela importante na região.
“A gente tem uma política rodoviarista há bastante tempo. Essa política passa por cima de todas as leis, tanto nacionais quanto municipais, de prioridade ao transporte público: o transporte coletivo ou o individual não motorizado que é a pé, bicicleta e tudo o mais.” Charles comenta que são poucas as linhas de ônibus que conectam o Adhemar Garcia e o Ulysses Guimarães com o Boa Vista, assim como a falta de um itinerário com ligação direta entre esses bairros e o centro da cidade, que precisam parar no Terminal do Guanabara para só então se dirigirem à região central.
“São duas áreas, tanto uma cabeceira quanto a outra (da ponte) que não fazem conexão com o que nós chamamos de vias arteriais. Não são vias principais, elas são vias secundárias e a São Borja é até uma via sem saída […]. Então eu não consigo ter essa total clareza na necessidade de uma ponte no local” diz.
Em contrapartida, Valdete Daufemback, também socióloga, especialista em História e que já atuou como coordenadora do Arquivo Histórico de Joinville, acredita em bons feitos para a construção. “A ponte foi uma solicitação da comunidade (do Adhemar Garcia), não foi algo que alguém inventou. […] A população pedia mais mobilidade naquele espaço para ir para outros bairros e agora, ao que parece, há um outro lado que não quer. O que eu acabo vendo é um pouco de jogo de força entre uma comunidade que quer ter acessibilidade para outro lugar e uma comunidade que não quer perder a sua tranquilidade”.
Completando sua visão, a especialista destaca que algo muito comum entre as comunidades de costumes tradicionais – grupo social onde se encaixam os usuários da Associação de Pescadores do Boa Vista – a existência de uma vontade, por vezes até necessidade, em congelar o tempo. Dessa forma, aquela boa fase, aquele lugar feliz para a maioria, se mantém intacto. Essa vontade, porém, acaba congelando também o desenvolvimento da cidade, algo muito importante, principalmente para uma região industrial.
A construção da ponte modificaria, como afirma Valdete, essa estrutura pacífica da comunidade do Boa Vista; algo que já aconteceu por outra obra em Joinville. “Algumas pessoas na comunidade do Morro do Amaral também lamentam a construção da ponte próxima ao bairro por causa da perda nos seus costumes tradicionais. Essa ponte facilitou a chegada dos moradores à Tupy, o que levou as famílias da pesca para o trabalho fabril e modificou a sua estrutura social. É algo que também pode acontecer com o Boa Vista” explica.