Primeiro RPG brasileiro completa 29 anos em dezembro
Com quase três décadas de história, Tagmar continua sendo atualizado e está na terceira edição
Ao rolar os dados, sucesso! Você tirou 20, o resultado máximo, e acertou o inimigo em cheio. Já seus amigos não tiveram resultados tão bons. Flávia tirou dois e acabou tropeçando nas raízes de uma árvore enquanto corria na direção do ogro. Bruno conseguiu acertar só de raspão com sua espada. Apesar de ogros serem criaturas fortes e grandes, este ficou atordoado com o ataque crítico e fugiu mata adentro por estar sozinho. O confronto foi vencido, mas será que o ogro vai esquecer das cicatrizes?
Este é um exemplo de como uma partida do jogo pode se desenrolar durante um combate. A imaginação é o limite nos RPGs. É isso que torna o gênero tão viciante e querido por muitos. Além da jogabilidade em si, se reunir com os amigos em volta de uma mesa para jogar é a essência do RPG. Uma experiência que só esse tipo de jogo pode proporcionar.
Lançado em 1991 pela Editora GSA, Tagmar é um RPG de fantasia medieval do início dos anos 90 que trouxe uma grande novidade para a época. Em um único livro, reuniu tudo que um RPG precisava para uma boa partida: regras, magias, itens, ambientações, criaturas e uma aventura pronta. Já outros RPGs anteriores a este eram importados e vinham em vários livros, o que dificultava o acesso dos jogadores e também tornava a experiência muito mais cara.
Mas afinal, o que é RPG? Você já deve ter ouvido falar na sigla ou até mesmo conhece como “RPG de mesa”. A abreviação vem do inglês, que significa Role-Playing Game, ou seja, um jogo de interpretação de papéis. Os jogadores se reúnem tradicionalmente em uma mesa e cada um interpreta um personagem com certa liberdade por meio das regras do jogo, que podem ser diferentes dependendo do sistema.
As regras são essenciais para guiar os jogadores e o mestre, que é quem conduz, narra e descreve os locais, aventuras, desafios, pessoas, entidades e monstros da partida, que podem ser reais ou fictícios. O jogador pode embarcar em uma aventura ao espaço, em um cenário como o de Star Wars e até cavalgar pelos campos da Terra-Média e enfrentar Goblins.
Os RPGs são jogos mais colaborativos e sociais que competitivos. Uma típica partida reúne os participantes em um time para saírem em uma jornada. De certa forma, no RPG não há ganhadores e perdedores, diferente dos jogos de carta, tabuleiro, entre outros. O jogo faz com que os participantes trabalhem a empatia e a coletividade, uma vez que o grupo depende de todos para que a campanha tenha sucesso.
O “fim” do jogo depende do desenrolar da história e das decisões dos jogadores. Uma campanha, que é uma série de aventuras interligadas, pode acabar no mesmo dia e até levar meses ou anos. Para Mateus Dottein, mestre de jogo de RPG há dez anos, continuar uma campanha é muito mais interessante que sempre começar uma nova. “Os jogadores se apegam aos personagens. Podemos acompanhar a evolução da trama e das suas habilidades dessa forma”, explica.
O RPG de mesa veio dos wargames, jogos de guerra em formato de tabuleiro de estratégia militar, que podiam ser reais ou fictícios. No final da década de 60, elementos de fantasia foram cada vez mais sendo incorporados a esse tipo de jogo. Em 1974 nos EUA, Gary Gygax e Dave Arneson lançaram Dungeons & Dragons, popularmente conhecido como D&D, o primeiro RPG da história. Contando com um sistema D20 (que usa um dado de 20 lados), o jogo já era uma febre na época de 80 e em 83 deu origem ao desenho animado Caverna do Dragão, que ficou muito popular no Brasil através da estreia em 86 pela Rede Globo.
No Brasil, durante a década de 80, D&D ainda não tinha sido lançado oficialmente, e nenhum sistema de RPG brasileiro tinha sido criado, mas os entusiastas do jogo deram um jeito para ter acesso a ele. A “geração xerox” ficou conhecida por conseguir jogar através de cópias e impressões feitas em cima de vários livros de RPGs – trazidos do exterior por parentes ou amigos – mas sobretudo de Dungeons & Dragons. Quem sabia inglês, poderia traduzir ou mestrar o jogo. Assim, ele se popularizou pelo país.
Foi em 1985 que Marcelo Rodrigues começou a jogar RPG, o AD&D (Advanced Dungeons & Dragons), e montou um grupo com seus amigos Ygor, Júlio e Leonardo para poderem jogar. Três anos depois, em 1988, ele sugeriu para o mestre do grupo de fazerem seu próprio jogo. “Porque a gente não faz nosso RPG? A ideia é bem simples, não tem ninguém, a gente tá sozinho no mercado”, conta. Por conta de sua graduação em engenharia e trabalhar com engenharia eletrônica, ele analisou o sistema que D&D utilizava e chegou à conclusão de que não era tão complexo como se acreditava na época. “Eu olhei pra mecânica matemática atrás do D&D e era uma mecânica bobinha, tinha nada demais”, explica. Segundo ele, havia outros RPGs com temáticas muito mais complexas, como Rolemaster, Star Frontiers e Paranoia.
Devido ao sucesso que D&D obteve, a ideia era fazer um RPG comercial também. Eles começaram a desenvolver o sistema em pequenas partes, até terminarem a parte mais técnica do jogo em 1990. O problema chegou quando tiveram que escrever a história. “O livro de RPG é um manual, significa que você tem que escrever uma regra para outra pessoa entender aquilo”, diz. Para ele, não se trata apenas de escrever uma história, mas conseguir escrever de um jeito que todas as pessoas consigam entender. A partir disso, o grupo se dividiu nas tarefas. Leonardo, jornalista, ficou com a função da escrita e boa parte da ambientação. Ygor era o publicitário e Júlio contribuiu com a construção das magias e criaturas.
A ideia do grupo era fundar uma empresa, então foi criada a Editora GSA. Assim, eles não só criaram Tagmar como publicaram o jogo. Conforme Marcelo, ocorreu um pequeno atraso no lançamento em 91. O jogo, que era para ter sido lançado em outubro, acabou ficando para o fim do ano. “Acabou saindo quase na véspera do natal. A gente perdeu o natal daquele ano, infelizmente”, conta.
Tagmar foi o primeiro RPG brasileiro, e por pouco não foi o primeiro no Brasil. No início de dezembro, o jogo GURPS (Generic and Universal Role Playing System) foi trazido dos Estados Unidos e lançado no país pela editora Devir, ganhando o posto de primeiro RPG oficial do Brasil.Tagmar fez sucesso e vendeu bem por conta do mercado que ainda era muito recente e tinha pouca concorrência.
As dificuldades começaram a surgir em relação à GSA quando eles perceberam que administrar uma editora não era tão simples. “A gente sabia fazer RPG, mas a gente não entendia nada de vender”, explica Marcelo. O grupo levou um tempo para compreender que precisavam de um distribuidor, um canal de divulgação, publicidade, marketing, e segundo ele, essa foi uma das falhas da editora.
Na metade dos anos 90 aconteceu uma crise no mercado, em decorrência da Editora Abril ter trazido D&D oficialmente para o Brasil. Os livros eram caros e para poder jogar uma partida era necessário ter no mínimo três deles. Conforme Marcelo Rodrigues, “RPG virou sinônimo de encalhe”. As empresas que compraram D&D não conseguiam vender e o mercado ficou saturado.
Consequentemente, as vendas de Tagmar também foram decaindo. “A gente não tinha escala, não tinha volume, e o que aconteceu era que não dava pra viver de RPG, basicamente”, conclui. Assim, a empresa encerrou suas atividades em 97 e cada um do grupo seguiu sua vida. “Não é que a empresa faliu, a gente simplesmente desistiu, não tinha dívidas”, conta. O jogo saiu de linha e ficou em hiato durante alguns anos.
Na virada do século, através de seu sobrinho, Marcelo descobriu que alguém estava publicando alguns livros para download na internet. “Eu entrei em contato com o administrador do site e consegui conversar com ele e pedi para retirar o conteúdo”, menciona. Claramente, a página não possuía licença para postar os materiais, mas Marcelo acabou gostando do “serviço” e conversou com os autores para eles darem a autorização necessária para que o site pudesse postar do jeito certo. “Eu juntei o pessoal e falei: “Pô, vamos liberar esse material que está parado aí, a gente nem está ganhando dinheiro”, explica. Em 2004 os direitos comerciais de Tagmar foram liberados.
Algum tempo depois, Marcelo resolveu criar seu próprio fórum, o Projeto Tagmar 2, para poder postar o material. A intenção era revisar e atualizar o RPG com participação coletiva. “Eu avisei em alguns grupos que dia tal ia começar, e no dia marcado já tinha 50 pessoas. As pessoas ficaram alucinadas, “vamos fazer””, destaca. Para ele, o trabalho coletivo consegue produzir uma quantidade de material muito grande, à custo zero. O projeto foi criado utilizando os moldes de Open Source. Nesse tipo de licença, os produtos são criados através de trabalho voluntário e todo material fica com uma licença Creative Commons, parecido com domínio público, mas com a restrição de não ter uso comercial.
Depois de lançar a versão 2.0 do jogo em 2005, o projeto não parou por aí. Vários outros livros foram atualizados, regras e habilidades revisadas e adicionadas, criaturas novas criadas. Depois dessa evolução, o Tagmar 2.1 nasceu, logo depois o 2.2 e o 2.3. “A gente ia lançar o Tagmar 2.4, mas fizemos tantas mudanças que isso não era mais uma pequena atualização, era uma grande atualização. Então em 2018 surgiu o Tagmar 3”, conclui.
O projeto continua até hoje, com uma média de dois a três lançamentos por ano. Todo o material se encontra disponível no site Tagmar para leitura e download gratuito, e pode ser impresso e encadernado em uma gráfica para ter o material em mãos e jogar com mais facilidade.
Dos livros à vida real
O ilustrador e escritor Domênico Gay entrou em contato com o RPG no início da década de 90. Na época, seu grupo de amigos escrevia e desenhava histórias em quadrinhos através do jornal da escola em que estudavam, onde eles publicavam as criações. Em um dos anúncios no jornal, um mestre de RPG estava atrás de potenciais jogadores. “Eu fiquei curioso e fui procurar o cara. Acabei entrando no meu primeiro grupo de RPG”, conta. Logo em seguida, Domênico comprou seu primeiro livro do gênero e começou a mestrar para o grupo do jornal, e mais tarde, eles tiveram contato com vários títulos que foram lançados na época.
Após jogar Vampiro: A Máscara com seu grupo, foi criado entre eles um projeto de LARP (Live Action Role-Playing), em português, jogo de interpretação ao vivo. Comumente chamado de Live Action, é considerado uma variação ou uma evolução de RPG. Nele, o local escolhido é utilizado como o cenário da partida ao vivo e o mestre atua como narrador e mediador, mas de uma forma diferente como no tradicional RPG. Como o cenário é real e não fictício, o mestre não precisa descrevê-lo, apenas definir o tema ou a história do Live Action. No LARP também não são utilizados dados, característica essencial para o RPG comum. Quem vê de fora poderia confundir uma partida com uma festa à fantasia, uma peça de teatro e até mesmo um evento medieval.
Após manter essas lives por cinco anos, foi organizado um encontro regional de LARP na cidade. “Depois disso eu sempre me mantive ativo dentro do cenário de RPG da região. Participando dos poucos eventos de LARP que tivemos por aqui, mestrando onde podia, procurando grupos novos”, explica. Por conta disso, Domênico começou a utilizar os conhecimentos em desenho para procurar uma carreira como ilustrador de RPG.
O primeiro projeto de RPG que ele contribuiu foi Tagmar 2.0, em 2005. “Eles precisavam de ilustradores, então eu entrei em contato e fiz uma série de ilustrações. Foi a primeira vez que meu trabalho foi publicado de fato”, diz. Ele conta que esse projeto trouxe uma certa visibilidade para sua carreira de RPG no país, mesmo ele já tendo participado de histórias em quadrinhos e trabalhos independentes.
Em 2018, ele inaugurou a Taverna do Valhalla, um lugar onde as pessoas podiam se reunir para jogar e discutir sobre RPG, boardgame, cardgame, beber hidromel e participar de Swordplay, um jogo de espadas (ou outras armas) onde é encenada uma luta.
“Eu tenho um espaço físico muito grande e a região não tinha nenhuma loja especializada de RPG, então uni o útil ao agradável”, explica. Hoje, a Taverna não existe mais, assim como qualquer empreendimento, exige um bocado de manutenção. “Eu estou mais interessado em me dedicar à carreira de ilustrador e menos em manter o local” completa. Ele conta que ainda tem a intenção de produzir algum projeto mais esporádico ligado ao Sword Play, que não existe na região de Pelotas, e segundo ele, “faz um pouco mais de falta”. Hoje, Domênico não trabalha só como ilustrador, mas como escritor e autor de RPG.
Reportagem: Pauline Ramlow
Conteúdo original do Primeira Pauta Impresso, Edição 154 │Disciplina Jornal Laboratório I, 4ª Fase/2020.