Memórias de Vila Maria
A história do casarão que quase teve as memórias apagadas por um incêndio
Por: Mateus Lino
Bombeiros para todos os lados. Pessoas desesperadas. Gritos que predominaram na noite do dia primeiro de junho de 2018, na rua Procópio Gomes de Oliveira, 934, em Joinville. O trânsito parou. Os olhos, que antes estavam voltados para a zona que fica ao lado, tomaram um novo rumo. Uma multidão reuniu-se em frente ao prédio para ver o que estava acontecendo. Os estudantes, que tinham aula próximo dali, chegaram atrasados naquela noite. A rotina intensa das pessoas foi interrompida por alguns instantes.
Em meio ao falatório, começam os ruídos. Vidros quebrados. Portas derrubadas. Fumaça para todos os lados. No chão se viam entulhos, lixos e até restos de cigarro. Eram as próprias memórias do casarão Vila Maria que estavam em chamas naquela noite. Aos poucos, o fogo se alastrou pelos corredores da casa de dois andares. De acordo com os bombeiros, as chamas atingiram 22 metros de altura do segundo pavimento do casarão. Mas logo veio a notícia: apenas o segundo andar sofreu com os danos do fogo.
As perguntas sobre a causa do incêndio são muitas. Não foram os espíritos que ali estavam? (Afinal, a casa sempre foi considerada um mistério para muitos). E se foi um incêndio criminoso? Essas dúvidas nunca foram respondidas. De acordo com o que a polícia declarou na época, o fogo pode ter sido causado por uma briga entre pessoas em situação de rua, que usavam o local como moradia.
Em seus mais de 100 anos de história, Vila Maria foi casa para muitos. O prédio foi construído em 1913, ano de um importante acontecimento histórico: centenas de mulheres norte-americanas foram às ruas de Washington exigir o direito do voto. Na época, elas não foram levadas a sério, mas ali começou uma revolução. Já em Joinville, em um contexto histórico machista e opressor do século XX, Procópio Gomes decidiu homenagear sua companheira Maria Balbina e deu o nome do casarão de Vila Maria.
Entre um corredor e outro da casa, as fotos de uma família feliz estavam fixadas nas paredes. Nos quartos, o aroma era de perfume a todo instante. Maria Balbina não gostava de ver poeira no chão. Ao olhar pela janela, o cenário mostrava uma cidade com um futuro promissor. Ao forçar um pouco a visão, era possível ver a água cristalina do Rio Cachoeira.
No assoalho de entrada, feito de madeira da mais alta qualidade, ficaram as marcas de sapato dos políticos da época. “Track, track, track” era o som que saía da grande escadaria. No segundo andar, as grandes salas eram palcos para as conversas que aconteciam em família. Em questão de segundos, a mente do político era invadida pelo choro de um de seus 12 filhos.
Os pensamentos do ex-prefeito foram silenciados no ano de 1934, quando faleceu. Cinco anos depois, em 1939, foi a vez de Maria Balbina descansar. Após a morte, a Vila Maria ficou de herança para os filhos. Por ser uma estrutura construída no início do século XX, com o passar dos anos, a casa começou a apresentar problemas cotidianos. As telhas começaram a cair com as fortes chuvas. O assoalho deteriorou-se. Os cupins apareceram. E mesmo com os problemas, a casa tinha um cuidado especial da família Gomes. Em 2004, os descendentes do ex-prefeito deixaram o imóvel e alugaram para uma empresa de eventos. Nesse momento, tudo mudou.
Todo fim de semana a casa era cercada de crianças. Berros para um lado, chutes nas paredes, vômitos nos cantos. Vila Maria tinha se transformado em uma casa de festas infantil. Não há uma só criança em Joinville que não quisesse participar de um aniversário naquele lugar mágico.
Em 2010, a casa foi desocupada pela empresa de eventos. Ratos, baratas, lixos, todo tipo de praga começou a aparecer. O lugar já não tinha mais o brilho original, nem o perfume que Maria tanto prezava. Aos poucos, a força da natureza destruía o casarão. Além dos animais que se alojaram no imóvel, as pessoas em situação de rua também invadiram o local para passar as noites. Em 2013, o casarão foi vendido para um comerciante do Paraná, proprietário do sistema funerário Prever.
Mesmo com um novo dono, a casa ficou fechada até 2018, quando um incêndio resgatou as memórias de um casarão com mais de 100 anos.
A restauração
Fazer a restauração de uma casa antiga pode causar dor de cabeça aos proprietários e, muitas vezes, o processo é deixado de lado por falta de recursos. De acordo com a Fundação Catarinense de Cultura (FCC), o custo de uma obra de restauro depende do estado de conservação geral do imóvel. A falta de manutenção e conservação faz com que o local fique mais danificado ao longo do tempo.
Em 2001, o casarão Vila Maria foi tombado pela FCC, que reconheceu o valor histórico que a casa tinha para Joinville. No ano de 2016 o órgão aprovou um projeto de restauração da Vila Maria, que é coordenado pela arquiteta Lívia Falleiros, da Vega Engenharia e Arquitetura.
“Um dos principais objetivos da obra é recuperar grande parte do forro e do assoalho que foram danificados com o passar do tempo. O projeto ainda contempla uma fachada com vidro e banheiros para os visitantes”, afirma Lívia.
De acordo com informações da arquiteta, o projeto ainda não começou a ser colocado em prática, pois faltam recursos financeiros. Hoje, o imóvel está para alugar. Assim como a Vila Maria, existem outros 44 patrimônios tombados pelo Estado em Joinville.
Segundo a arquiteta especialista em patrimônios tombados, Simone Schroeder, a falta de ações mais efetivas na área de educação patrimonial é um dos principais motivos para o abandono de imóveis históricos. “Existem interesses financeiros que apostam no abandono do bem para que com o tempo o imóvel esteja degradado a ponto de inviabilizar economicamente uma restauração, especulação imobiliária, problemas judiciais, disputas familiares entre herdeiros, acúmulo de dívidas com taxas municipais”, disse. Ela relata que há um “tabu” em achar que o imóvel está “congelado” e que não é possível fazer mudanças.
Hoje, o casarão aguarda o processo de restauração. Mas, enquanto o projeto não sai do papel, Vila Maria está eternizada nas memórias de Joinville.