HISTÓRIAS E MEMÓRIAS: JOINVILLE POR OUTRO ÂNGULO

Existe transporte público em Joinville?

“Trabalhadora voltando pra casa
Perguntando pra Deus: "Por que não tenho asas?"
Pra voar pelos ares e voltar para o lar [...]
Nove horas o trabalho é bem mais suave
Que as duas horas balançando na condução.

(Rincon Sapiência)”

Quando se entra em um transporte coletivo de Joinville após as 18h, é possível notar o semblante dos trabalhadores. O cenário é preenchido por  pessoas cansadas e cabisbaixas, buscando distração e conforto no celular após um dia exaustivo de trabalho. Os dedos teclam por um feed infinito, conversas em redes sociais e jogos.  Quem não está no celular, tem o olhar vazio, que atravessa a janela em direção a rua. As ruas esburacadas fazem as janelas e as portas tremerem, o que gera ainda mais desconforto, em um momento em que só o silêncio é desejado. 

O professor Gustavo Gartz Santana, 31, utiliza o transporte coletivo diariamente. Portador de deficiência, ele descreve que a sensação de entrar em um ônibus é deprimente. “Infelizmente, hoje ainda temos pessoas muito mal educadas, que, quando eu subo no ônibus, não dão o lugar”, relata. 

Gartz relata que diversas vezes já sofreu em situações por não possuir o membro inferior direito. “Às vezes, peço para o motorista aguardar até eu sentar, e, muitas vezes, eles ‘arrancam’ e saem com pressa. Eu quase caí algumas vezes”, contou. Ainda, ele comenta que já presenciou a mesma situação com idosos e pessoas com crianças de colo. 

Atualmente, Gustavo permanece duas horas do dia dentro do ônibus, uma para ir até o trabalho e outra para voltar. Porém, há pouco tempo atrás, ele passava o dobro desse período dentro do transporte coletivo. Antes da mudança de linha, Gartz levava duas horas para ir até o trabalho e mais duas para voltar. “Isso se não tivesse trânsito”, ressaltou. 

Durante a pandemia do Covid-19, em 2020, cerca de 70 linhas foram suspensas na cidade. Segundo a prefeitura de Joinville, a ideia era cortar os gastos, já que o número de passageiros diminuiu. No entanto, à medida que a população voltava ao trabalho presencial, os ônibus em circulação não. A decisão,que era provisória, acabou ficando por quase dois anos, com pequenas adições.

Em 2024, quatro anos após a pandemia, mais alguns horários e itinerantes retornaram, e mesmo assim, continuou a reclamação dos usuários devido a falta de ônibus. Atualmente, o transporte coletivo de Joinville conta com 60 linhas e roda em 84 quilômetros de ruas pela cidade.

“Temos um gasto médio de R$ 3, 7 mil anuais. Eu, por exemplo, não tenho uma bolsa estudantil de 100%. Então essa meia passagem faria muita diferença, pois eu conseguiria pagar minha faculdade e focar em um curso."
Antonny Muniz, 23 anos
Estudante de direito

Embora a prefeitura de Joinville tenha anunciado alguns itinerários que retornaram após três anos da pandemia, período em que vários cortes foram feitos no transporte público, ainda há diversas reclamações dos usuários que reivindicam mais horários de ônibus. A reportagem do Primeira Pauta procurou usuários do transporte coletivo para saber quais eram os principais problemas dos ônibus de Joinville. Entre as queixas, estavam a superlotação, falta de horários, valor da passagem, veículos sem ar-condicionado, pontos de ônibus sem conservação e falta de veículos em locais específicos. 

Durante a pesquisa, 60 de 80 pessoas alegaram que os maiores problemas do transporte coletivo de Joinville são a falta de horários e o valor alto da tarifa, que hoje está entre R$ 5,50 a antecipada e R$ 5,75 a embarcada. Para se ter uma ideia, em um mês, o valor gasto por um trabalhador que compra duas passagens de ônibus durante cinco dias por semana é de R$ 220, o que não condiz com a realidade da maioria dos estudantes brasileiros que ganham menos de R$ 800 e R$ 2 mil em um estágio. Este é um dos motivos para que o estudante de direito Antonny Muniz e outros alunos da faculdade Inesa iniciarem o movimento Meia-Passagem em Joinville. Natural de São Paulo, Antonny também foi membro da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBS), e percebe a necessidade de debater a viabilidade da meia passagem para estudantes universitários em Joinville. “Temos um gasto médio de R$ 3, 7 mil anuais. Eu, por exemplo, não tenho uma bolsa estudantil de 100%. Então essa meia passagem faria muita diferença, pois eu conseguiria pagar minha faculdade e focar em um curso.”, explica. 

O movimento meia passagem visa agrupar todos os estudantes, e não quer ser pautado com bandeiras ideológicas ou partidárias. “A gente não está no papel de julgar ninguém, nem de entrar em uma guerra política. Estamos aqui para unir forças e alcançar nosso objetivo”, afirmou o estudante e presidente do movimento. Na cidade, também existe o movimento tarifa zero, que busca abranger toda a população. No entanto, o movimento perdeu força com o passar dos anos. Para o movimento Meia-passagem, o que assusta a população a aceitar a mobilização e a luta são agentes que utilizam discursos e ideologias para barrar esse direito.

“A oposição argumenta que o dinheiro usado para isentar a passagem sairá do bolso de alguém, e consequentemente, a população se sente ameaçada. Eles pensam ‘opa, vou liberar o passe’, mas, automaticamente, eu vou ser afetado. O nosso movimento da Meia-passagem vem mostrar para os estudantes, para os munícipes, e principalmente para a administração pública direta e indireta, que Joinville tem capacidade para fornecer a Meia-passagem estudantil, sendo a terceira economia aqui da região de Santa Catarina, um polo industrial, e um dos maiores PIBs do Brasil também. A grande diferença que eu tenho é essa. No entanto, nossa forma de lutar por esse direito é, de certa forma, transparente e mais razoável”, finalizou Antonny. 

Os usuários do transporte público, que circulam entre as zonas Norte e Sul da cidade, terão novas opções de horários de ônibus nos dias úteis, durante os períodos de maior movimento. Uma das novidades é a criação da linha 1610 Circular Anita Garibaldi, que vai reforçar o atendimento dos eixos Ottokar Doerffel, ruas Tupy, Minas Gerais e Anita Garibaldi. A linha vai operar nos dias úteis e vai sair do Terminal Central às 6h23. “O objetivo é que essa nova linha sirva como apoio à linha do Morro do Meio para atender a demanda de passageiros que precisam embarcar no eixo da Anita Garibaldi”, explica Erick Koglin, coordenador da Unidade de Transportes da Secretaria de Infraestrutura Urbana (Seinfra) da prefeitura de Joinville.

JOINVILLE

Transporte coletivo

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Linhas de ônibus

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Quilômetros de vias

A dívida

A nova licitação para uma “nova” empresa administrar o transporte público de Joinville está aberta. Até este momento, nada demais, porém o que é solicitado pela prefeitura à nova empresa de ônibus é que seja pago a dívida à Transtusa e Gidion. Isto já é o suficiente para qualquer empresa repensar se vale a pena concorrer a esta licitação. Para o estudante, a prefeitura não tem interesse no benefício do projeto da meia-passagem, alegando que não há como custear o valor das passagens. Mas para entender por que o transporte coletivo passa por uma crise, é necessário resumir o que aconteceu para chegar neste ponto.

O primeiro contrato entre a prefeitura de Joinville e as empresas de transporte coletivo foi estabelecido em 1973. Em 1994, o Centro de Direitos Humanos de Joinville, liderado pelo mesmo personagem que reconheceu a dívida posteriormente, o político Carlito Merss, na época, entrou com uma Ação Civil Pública citando irregularidades no contrato. O motivo da dívida foram os anos de reajuste abaixo do que as empresas pediam baseado na planilha apresentada, essas diferenças foram se acumulando até que chegasse neste ponto onde nos encontramos.

Em 1998, o então prefeito Luiz Henrique da Silveira (MDB) promulgou leis que organizavam o sistema de transporte coletivo. Posteriormente, nos anos de 2005, 2006, 2008 e 2010, as empresas concessionárias moveram ações para buscar equilíbrio financeiro de supostos déficits. Em seus últimos dias como prefeito, Carlito Merss assinou o reconhecimento da dívida da prefeitura com as empresas que administram o transporte público de Joinvile, no valor de R$ 125.406.443,39.

Atualmente, a tarifa técnica do transporte coletivo é de aproximadamente R$ 6,26. No entanto, os joinvilenses pagam R$ 5,25 a antecipada e R$ 5,50 embarcada. Para cada passagem, a prefeitura custeia um reequilíbrio de aproximadamente R$ 1,01. Mensalmente, o investimento da gestão municipal para garantir o funcionamento do sistema é de, em média, R$ 2,1 milhões. Durante um ano, o custo total do sistema de transporte coletivo totaliza R$ 158 milhões. Contudo, se considerarmos apenas o valor do novo modelo de concessão, com todos os benefícios propostos pelo Sistema de Mobilidade de Joinville (Simob) nos quesitos mobilidade, infraestrutura, tecnologia e transparência, o custo do novo sistema alcançará R$ 186 milhões. Isso representa um aumento de R$ 27,8 milhões ao ano, equivalente a 17,5%. Logo, a tarifa técnica passaria a ser de R$ 7,36.

Entretanto, para a nova licitação, há uma determinação judicial para incluir a outorga no pagamento da dívida. Com isso, além de considerar o custo do Simob, é necessário prever o custo dessa outorga. Incluindo a outorga, o custo do sistema aumenta para R$ 217 milhões ao ano. Assim, o valor da tarifa técnica passa a ser de R$ 8,58. Em uma simulação do cenário atual, onde o valor da passagem é R$ 5,25, o reequilíbrio por parte da prefeitura, por passagem, passará a ser de R$ 3,33. Desta forma, o investimento mensal da prefeitura no transporte coletivo aumentará para aproximadamente R$ 7 milhões.

O ônibus é um local de vários acontecimentos e encontros de diversas realidades. De fato, o brasileiro no transporte coletivo é um dos maiores sentimentos de pertencimento, seja bom ou ruim, pois cada brasileiro carrega algum momento inesquecível dentro do ônibus. Um bom exemplo é de Valério Deglmann, que há 20 anos está diariamente nos ônibus de Joinville, no assento que toda criança queria estar: o do motorista. “Um acontecimento que sempre está na minha memória foi quando, em um dia de muita chuva, havia uma pessoa com deficiência visual para desembarque em um ponto de ônibus sem abrigo. Foi aí que decidi desviar o roteiro e deixar ele mais próximo do seu destino”, relembrou Valério.

A história do motorista é uma entre as milhares que acontecem diariamente no transporte coletivo, não apenas em Joinville, mas no Brasil inteiro. Embora essa seja uma história de compaixão, Gustavo Gartz, apresentado no início desta reportagem, traz uma história de constrangimento: como deficiente físico, ele teve que provar suas deficiências à empresa responsável, para que tivesse o benefício do transporte eficiente. Porém, a sua solicitação foi negada. “Eu tinha feito todo o processo, e me passaram o contato da empresa para saber como está minha solicitação para o transporte eficiente”, explicou. Como resposta, a empresa afirmou que ele foi “reprovado pelos documentos apresentados pelo requerente com base no decreto 9561 de 14 de abril de 2000, o mesmo não preenche os requisitos legais para utilização do transporte eficiente”. 

O decreto 9561, citado pela empresa, estabelece as normas para acessibilidade das pessoas com deficiência em Joinville. Mesmo com a garantia em lei, o usuário tem que passar por constrangimentos e negligências por parte da empresa. “Mesmo colegas que têm o braço amputado, não conseguem acessar esse direito. Para eles, (empresa) apenas cadeirantes podem usufruir deste direito”, finalizou.

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PRODUÇÃO

Patryck Vinicius Cachoeira

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