Chuvas intensas revelam falta de planejamento urbano e desafios de políticas públicas em Joinville
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29 DE MAIO DE 2025
C
hoveu um dia e uma noite inteira. “Nós que não tínhamos base de como eram as enchentes, não imaginávamos o que ia acontecer e ninguém veio nos avisar, mas a água foi subindo e chegou na minha altura (cerca de 1,60 metro) e foi levando tudo. A gente via máquina de lavar, móveis, tudo rodando com a água, era um mar. Fomos para um sobrado e ficamos todos ‘se batendo lá’ até o bombeiro nos buscar e levar para o sinaleiro [o ponto alto mais próximo]. E lá ficamos até a próxima manhã, quando a água baixou e voltamos para casa para tentar arrumar alguma coisa. A gente não morreu porque era de dia e por sorte havia aquela casa alta.”
“A gente via um rio passando aqui, foi tudo muito rápido. Eu estava em um vizinho ajudando a levantar as coisas, pois já haviam tido outras enchentes menores e precisei ir nadando até em casa, pois tinha dois filhos pequenos, de seis e sete anos. Coloquei eles em uma laje para passar a noite, e amarrei o pé de um deles, pois ele era sonâmbulo e podia cair na água. No outro dia, meu irmão levou os dois embora e após a água baixar pude começar a arrumar a casa.”
Estes relatos pertencem à Maria Madalena Melo Nascimento, de 80 anos e Tarcizio Frainer, de 62 anos. Ambos são moradores do Jardim Sofia, bairro na região norte de Joinville, em Santa Catarina, e presenciaram a maior enchente já ocorrida no município, no dia 9 de fevereiro de 1995. Eles lembram que após a enchente perderam eletrodomésticos e móveis, e as paredes de suas casas ficaram úmidas por dias.
Muitas pessoas do bairro perderam itens que não haviam sido levados pela água, e sim furtados. Na época, devido às casas estarem vazias e abertas por conta da enchente, pessoas mal intencionadas aproveitaram a oportunidade para saqueá-las. A bondade, porém, falou mais alto.
Maria conta que após a água baixar, sua casa foi usada por médicos como um posto de saúde improvisado para atender os moradores do bairro. Durante dias, os moradores do bairro se reuniram na casa dela para tratarem os problemas causados pela enchente.
Os dois moradores concordam que foi realizado um notável trabalho de solidariedade por parte da comunidade. Diversas pessoas da região que não haviam sido afetadas pela tragédia realizaram doações de comida e de roupas, além de ajudarem a limpar as casas e lidar com outros problemas causados pela enchente. Por outro lado, Tarcísio conta que a prefeitura não ofereceu suporte imediatamente, pois primeiro precisou fazer um levantamento sobre os impactos da enchente, para assim lançar uma lista — a ajuda não aconteceu por questões burocráticas.
Naquela ocasião, a cidade foi acometida por uma série de fatores: chuvas intensas e constantes, combinação de circulação marítima e baixa pressão atmosférica, aumento do nível do mar e as mudanças climáticas — que já eram evidenciadas por cientistas naquela época, mas não estavam tão em voga como atualmente.
Todas essas combinações resultaram no rompimento da barragem do Rio Cubatão. A água invadiu casas, plantações e estradas, destruiu pontes e causou estragos por onde passou.
O Distrito de Pirabeiraba, assim como os bairros Jardim Kelly, Jardim Sofia e Jardim Paraíso, foi um dos mais afetados. Segundo Wivian Nereida Silveira, mestre em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que fez um estudo sobre as enchentes em Joinville desde a fundação da cidade até o ano de 2008, estima-se que 22% da área total da cidade tenha sido tomada pelas águas.
A tragédia deixou três mortos, 15 feridos, 15 mil desalojados, 5.725 desabrigados e cinco mil casas atingidas. Segundo a Defesa Civil de Joinville, a enchente causou um prejuízo de mais de R$ 486 milhões que, em valores atualizados, equivalem a mais de R$ 3 bilhões, conforme o Banco Central do Brasil.
O problema, contudo, não se resume à enchente de 1995. O videográfico abaixo, produzido pela repórter Caroline de Apolinário, mostra que questões ligadas a alagamentos atingem vários pontos da cidade.
Joinville convive há mais de um século com históricos de alagamentos, inundações (transbordamento da água, atingindo áreas que normalmente não são cobertas por ela) e enchentes (aumento do nível da água, sem transbordamento). Ao todo, 111 inundações ocorreram na cidade entre os anos de 1851 e 2008, segundo análise da engenheira ambiental Wivian Silveira.
A cidade foi erguida sobre mangues e fundos de baías, o que, consequentemente, gera cheias e dificuldades para construir as fundações de imóveis. A trajetória de Joinville é um resultado conflituoso entre a preservação ambiental e desenvolvimento urbano. Em entrevista, a historiadora Valdete Daufemback explicou que a localização geográfica, com o histórico de avanços e recuos do mar até a serra, foi estrategicamente equivocada.
O traçado urbanístico de Joinville se deu ao longo do Rio Mathias e do Rio Cachoeira. A parte periférica e carente da cidade está instalada em áreas suscetíveis a sofrerem com os reflexos das enchentes e riscos geológicos, pois geralmente ficam em morros, baixadas inundáveis e mangues.
A historiadora esclareceu que para esta ocupação urbana não foram realizados estudos prévios dos rios e ecossistemas locais. Embora as enchentes sejam recorrentes, as construções sobre as áreas ambientais auxiliaram na amplitude das cheias e na forma em que os impactos se tornaram mais visíveis e sentido pelos moradores.
O vídeo abaixo, produzido pela repórter Hayana Ribas a partir de uma entrevista realizada pela repórter Camila Bosco com a historiadora Valdete Daufemback e de imagens de arquivo cedidas pela NSC TV, relembra aspectos da enchente de 1995 e os problemas que a cidade ainda enfrenta.
Outro aspecto importante é a proximidade da cidade com o mar. Joinville não tem praias, mas está situada próxima à Baía da Babitonga. Quando a maré sobe, a cidade sente reflexos, inclusive no Centro, com inundações mesmo sem chuva.
Além disso, ao longo dos anos, eventos climáticos como o El Niño vêm se intensificando cada vez mais, fazendo com que grandes quantidades de chuva ocorram de forma mais espaçada, porém mais intensa. A cada verão, o município chega a registrar entre 200 e 250 milímetros de precipitação mensais, o que faz com que canais de escoamento, rios e córregos transbordem.
A intervenção humana também colabora para agravar as situações de inundações e enchentes. Joinville cresce em cerca de 10 mil pessoas por ano. Segundo o último Censo Demográfico, realizado em 2022, a cidade tinha uma população de 616 mil habitantes.
Em 2024, o IBGE indicou um crescimento populacional ainda mais incisivo, com uma estimativa de 655 mil habitantes. Para Valdete, o papel do governo se reduz em arrumar espaços para a população construir, enquanto empresas imobiliárias são igualmente responsáveis pela destruição ambiental ao ocuparem e lucrarem com imóveis erguidos nesses espaços.
O processo desenfreado de urbanização e crescimento faz com que as margens dos rios, áreas de baixa altitude, relevo plano e planícies de inundação sejam ocupadas. Muitas dessas construções degradam o ambiente ao redor, aumentam o volume de áreas impermeáveis e diminuem a capacidade de infiltração.
Ao considerar cenários futuros para Joinville diante da crise climática, Valdete relembrou da enchente marcante de 1995. A historiadora, que esteve presente em uma das maiores tragédias da história local, atravessou a enchente acompanhada por um aluno, que sentiu a força da água na altura dos ombros, e somente no dia posterior, pelos jornais, souberam da dimensão do acontecimento.
O sentimento era uma mistura de pânico, medo, incerteza e ansiedade por não saber o que estava ocorrendo. Na época, segundo a Defesa Civil, mais de 15 mil pessoas tiveram suas vidas mudadas do dia para a noite, perderam moradias, acordaram na lama e com animais mortos espalhados pela casa. Ainda assim, um cenário que ocorreu há 30 anos não está tão distante da realidade que a população ainda pode enfrentar.
“Então é uma sensação assim de muito medo, porque tu não sabe o que vai acontecer daqui a pouco. Imagino que as pessoas que estão passando por enchentes agora estão passando por esse momento. Ele passa uma vez por uma enchente e ela está sempre na memória, aquele medo que dá para as próximas”, desabafa a historiadora.
Os dois comparadores de imagens abaixo, elaborados pelas repórteres Camila Vieira e Caroline de Apolinário, mostram os impactos da chuva em Joinville em diferentes épocas.
A imagem acima remete à histórica enchente de 1995. A imagem é da Casa Krüger, que fica no distrito de Piraberaba. A imagem antiga foi cedida ao Primeira Pauta pela NSC, que também cedeu os direitos da imagem abaixo, e a nova foi produzida pelo estudante Alysson Castro.
Já a imagem a seguir é da Paróquia Santo Amaro, que fica no bairro Bom Retiro de um alagamento ocorrido em 7 de dezembro do ano passado. O clique atual é do repórter Diogo Oliveira.
Quem já passou por uma enchente sabe o medo de revivê-la, e eventos assim estão se tornando cada vez mais presentes. Um exemplo foram as enchentes no Rio Grande do Sul, em 2024. Com a crise climática e o aquecimento global, imagens como aquelas podem se repetir.
O aquecimento global, aumento da temperatura média terrestre, é causado pelo acúmulo de gases poluentes na atmosfera. Esse fenômeno também está relacionado com o efeito estufa, que apesar de ser um processo natural para manter a temperatura adequada do planeta, vira um problema ao ter a emissão de gases poluentes.
Vale lembrar que a emissão de gases de efeito estufa iniciou com a Revolução Industrial, ainda no século XVIII, e o aumento é um resultado das atividades humanas, como desmatamento, queimadas e atividades industriais.
Uma das consequências desse fenômeno é o derretimento das massas de gelo das regiões polares. Com a temperatura do mundo subindo a cada ano — sendo 2024 considerado o ano mais quente já registrado na Terra, com uma média global de 1,6 °C acima dos níveis pré-industriais —, o derretimento das geleiras ocorre aceleradamente e contribui para o aumento do nível do oceano.
Um estudo da ONG Climate Central, apresentado durante a Conferência sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (COP 25), realizada há seis anos, em 2019, em Madri, apontava que diversas cidades no mundo sofreriam com o avanço das águas em decorrência do aquecimento global.
A afirmação voltou à tona em 2021, quando um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) disse que “as mudanças climáticas já estão alterando a localização, a frequência e a gravidade das inundações”.
Se o índice de aumento da temperatura global continuar nos mesmos moldes atuais, até 2050, 22 cidades do estado de Santa Catarina poderão ser ainda mais afetadas pelas ocorrências de maré alta. Joinville está dentro desse contexto, com bairros situados na zona sul — como Adhemar Garcia, Anita Garibaldi, Boehmerwald, Bucarein, Fátima, Floresta, Guanabara, Itaum, Itinga, Jarivatuba – e bairros da zona leste – como Aventureiro, Boa Vista, Comasa, Espinheiros, Iririú, Jardim Iririú, Vila Cubatão e Zona Industrial Tupy — entre os mais vulneráveis ao avanço das águas.
No entanto, para o mestre em Geologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rodrigo Aguilar, as mudanças climáticas atuais vão além do aquecimento do planeta. Por exemplo, existe um aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos, incluindo as chuvas. Ou seja, irregularmente, há volumes elevados de chuva que costumavam acontecer com um intervalo de décadas, mas estão ocorrendo em períodos mais curtos, com mais milímetros registrados.
“Pensando nas enchentes, isso significa mais água chegando em curtos espaços de tempo, dificultando a infiltração natural para o solo e favorecendo o escoamento na superfície, aumentando significativamente as vazões dos rios”, explica.
Além disso, volumes extremos de chuva saturam o solo em água e, com isso, impedem a passagem hídrica para o subterrâneo. Aguilar ainda reforça que esse acúmulo de água na superfície, com os rios, formam uma tendência de transbordar. “Locais onde haja impermeabilização do solo vão receber esse volume d’água sem ter como deixar sair da superfície”, complementa.
Porém, o infiltramento e escoação da água também estão ligados com o relevo, solos, rochas e a estrutura geológica. No caso de Joinville, uma cidade serrana, com vales estreitos entre montanhas, as vazões dos rios podem aumentar rapidamente. Como explicou o geólogo, o relevo acidentado faz com que todo o escoamento seja concentrado no vale principal. “Além disso, as rochas da região não são porosas, apenas onde há fraturas geológicas ocorre entrada de água nos aquíferos, fazendo com que o escoamento superficial seja favorecido”, pontua.
Alterações no solo de uma região também influenciam o caminho que uma água vai percorrer após uma chuva. No caso de pavimentação urbana, o especialista explica que a infiltração da água será dificultada e haverá tendência de acúmulo e escoamento hídrico. Contudo, não é o único fator. A remoção de mata nativa também contribui para uma maior ocorrência de enchentes. “É preciso entender que a floresta de pé, no caso, a Mata Atlântica, cumpre uma função geossistêmica importante para a sociedade, não é apenas um espaço verde ‘inútil’.”
Para entender questões sobre crise climática e as consequências para as cidades, as repórteres Maria Kalfeld e Ketlin Mylena Ribeiro conversaram com o meteorologista Mario Francisco Leal de Quadro. Ele já trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São Paulo, e no Sistema Meteorológico do Paraná. Já em Santa Catarina, ele trabalhou na Epagri/Ciram. Desde 2003, ele é docente da área de meteorologia no Instituto Federal de Santa Catarina. É ainda professor de um programa de mestrado em Clima e Ambiente. Na entrevista, ele aborda a “tropicalização” da região de Santa Catarina, aponta problemas e sugere alternativas para mitigar os problemas. Confira.
Como as mudanças climáticas podem agravar os problemas de enchentes na região, e o que pode ser feito para se adaptar a esse cenário?
A gente tem uma consequência da geografia do local. Nós aqui de Santa Catarina moramos numa região que tem bastante transição entre massas quentes e úmidas, com frias às vezes secas ou úmidas que vêm lá da região polar. Então, climatologicamente, já é esperado que a gente tenha essa mudança brusca. Claro, no verão a expectativa é que tenha dias mais quentes e tempestades. No inverno é normal que tenha massas de ar frio. Outono e primavera são os períodos de transição, como quando entra uma massa de ar frio, dá uma esfriada, tira as roupas do guarda-roupa, mas logo já aquece de novo, e aí esfria, e aquece, e assim por diante.
O que está acontecendo com as mudanças climáticas? Estamos em uma ampliação, um aumento dessa área grande, aquecida, que seria a massa quente, e essa ampliação causa uma “tropicalização” da nossa região. O Paraná já está praticamente assim. As araucárias estão começando a sumir, a desaparecer daquela região. E Santa Catarina também está começando a sentir isso.
A consequência é que a gente acaba tendo mais eventos de calor, de dias mais quentes, e menos consequências de efeitos mais frios. Mesmo acontecendo menos eventos de frio, os que acontecem são mais intensos.
Você tem um exemplo?
O último grande evento de frio que assolou o Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do Brasil tinha sido em 1975, que é um evento famoso e muito estudado. Em 2013 tivemos outro grande evento no Morro do Cambirela, que nevou depois de 50, 60 anos. É mais fácil ter lá na serra catarinense do que aqui no litoral, por causa de questões geográficas. Tanto os eventos de frio intenso como os de calor intenso estão se amplificando. Existem mais eventos de tempestade e mais tornados. Teve um furacão em 2004, que foi o Catarina, coisa que nunca se imaginou. Não existe nenhum livro de meteorologia que diga que se forma furacão numa região subtropical, geralmente é na região tropical, e tudo isso é efeito e consequência dessa “tropicalização”, dessa variabilidade climática que a gente está sentindo.
E quais medidas são viáveis para esse problema de enchentes?
Enchente acaba sendo uma consequência. O Rio Itajaí talvez seja um grande exemplo. Quantos eventos de enchentes a gente teve nos últimos anos lá no Rio Itajaí? E parece que as autoridades não se importam.
Todo ano está acontecendo uma inundação ou outra. Nós temos sistemas de alerta, temos os centros de meteorologia, um centro estadual na Defesa Civil, um centro regional, lá na região de Blumenau. Estamos nos equipando com radares meteorológicos, com estações meteorológicas, contratação de pessoal, melhoria dos modelos de previsão e assim por diante. Mas falta uma coisinha que é importantíssima nisso tudo, que é a conscientização da população. Enquanto as pessoas, infelizmente, pensarem que o que está ocorrendo ocorre só com o meu vizinho, e não ocorre comigo, a gente nunca vai chegar numa tentativa de equilíbrio, que é a história do Acordo de Paris, um grau e meio, uma tentativa de redução da emissão dos gases que amplificam o efeito estufa.
Em 2015 houve um tornado em Xanxerê [região Oeste de Santa Catarina]. Foi muito famoso também. Agora praticamente todo ano tem tornado. E o tornado não é como um furacão que destrói uma grande área, ele vai varrendo. Às vezes, em uma rua ele causa danos e do lado praticamente não tem nada. Estivemos em Xanxerê em 2016 ou 2017 por um outro motivo, e conversando com as pessoas que viviam lá na época, muitas ficaram traumatizadas.
Como a educação ambiental, que é tão necessária, pode ser fortalecida para preparar a população para esses futuros eventos de enchentes? Como é que dá para fazer isso?
Eu tenho um projeto que foi aprovado na Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc) ano passado, que é para monitorar e prever casos, focos de mosquito e casos de dengue. Então, a gente usa inteligência artificial, redes neurais, modelagem de alta capacidade para auxiliar na compreensão dessa curva e como isso está afetando a incidência ou a ampliação de mosquitos que nunca imaginaríamos que iam aparecer numa região subtropical ou extra, fora dos trópicos. A cada ano a gente tem uma ampliação de casos, e aí a solução acaba sendo a tal da mitigação, que é uma adaptação a uma realidade nova.
Eu dei um exemplo dessa questão do Aedes [aegypti, o mosquito que transmite os vírus da dengue, da febre chikungunya e do Zika vírus], mas existem outras consequências: a balneabilidade de praia, a questão da vegetação, vários outros impactos ambientais que estamos sentindo e não há mais como voltar atrás, a única forma agora é tentar se adaptar a esse “novo normal”.
Aqui em Florianópolis acontece um comportamento um pouco distinto do inverno para o verão, chove um pouco mais no verão. Por isso, as chuvas estão aumentando muito e se mantendo constantes por causa desse aquecimento que eu falei para vocês. O clima está muito mais parecido com o que seria uma região do Sudeste do Brasil. As pessoas mais novas talvez até se adaptem mais facilmente a esse novo padrão, mas as pessoas mais antigas são aquelas que nas entrevistas geralmente falam assim: “Nunca na minha vida eu vi uma tempestade desse jeito.” “Nunca na minha vida eu passei por uma situação igual a essa.” Por quê? Porque ela viveu anos suficientes para perceber que agora está diferente, que agora as coisas não são mais como eram antes.
Quais são as projeções climáticas para Joinville nas próximas décadas, considerando frequência e intensidade das chuvas?
Devido à tropicalização, tem mais eventos de chuvas intensas, com uma frequência menor. Um dia de chuva que cai pode ser equivalente à chuva do mês inteiro. Às vezes, passa 30 dias sem cair um pingo d’água, e no 31º dia chove tudo o que deveria ter chovido nos últimos 30 dias. Isso para a agricultura é péssimo.
Dependendo da cultura e da época do ano, ele precisa ter uma regularidade da precipitação, e as culturas vão migrando. Essas são as projeções. Então, quem tinha cultura de frio, vai migrar lá para o sul do Brasil, ou para a Argentina. Essas projeções e amplificações estão mudando muito o comportamento.
Como o descarte incorreto de lixo e a falta de coleta podem influenciar nas enchentes?
São dois os motivos: o primeiro é a questão dos gases que são emitidos nos lixões. Isso acaba contribuindo com a questão do aquecimento global. E o segundo é o próprio descarte incorreto. Tem um aluno nosso aqui, que está implantando uma câmera no Rio Cubatão, para mapear o lixo que é transportado.
Os modelos hidrológicos no Rio Grande do Sul, depois da tragédia do ano passado, foram importantíssimos. Mas se eu começar a colocar lixo no local, é óbvio que vai entupir. E se entupir, ele vai provocar danos não só pela questão dos gases que são emitidos nos lixões, mas também por causa dessa impropriedade que se tem de não descartar lixo no local correto.
E não tem jeito, a população está aumentando, estamos ampliando cada vez mais a produção de lixo, e se a gente não se adaptar à situação, o dano vai ser muito grave no futuro.
Seguindo nessa mesma linha, imaginamos que a falta de saneamento básico também possa potencializar as enchentes. Se sim, como?
Florianópolis é uma cidade que tem pouco saneamento básico. Esgoto, tratamento de água tem, mas a parte do esgoto é bem deficitária, porque a cidade não foi planejada para isso. É uma falta de saneamento básico, que seria inimaginável numa cidade como a nossa aqui, que duplica, triplica a população na época do verão, e pouco é feito com relação a isso. Então, tem várias consequências que às vezes não é nem só em relação à própria mudança climática, mas é questão estrutural do local em que a gente vive.
Para finalizar, a temperatura do planeta aumentou. Daqui a alguns anos, cidades que nunca inundaram poderão inundar?
Todos esses estudos que estamos fazendo projetam uma elevação do nível médio do mar, e essa mudança não é linear. Todo mundo espera que vá subindo de pouquinho a pouquinho, que daqui a 100 anos, 50 anos, vai sentir a diferença. Não é bem assim que funciona a natureza, ela é mais caótica.
Em 2013 e 2014, era como se fosse um degrau. Pela primeira vez, em 2023, a gente já percebeu que a temperatura subiu acima daquele nível crítico de 1,5Cº.
Agora, em vários meses do ano passado, percebemos que já estava 1,6Cº, não é mesmo patamar, já é um outro. Dependendo da situação, daqui a uns anos, pode ser que esse degrau se amplifique e essas elevações não sejam mais tão suaves como têm sido.
E isso é pior para essa questão dos eventos com enchentes. Não porque o nível vai subir devagar, mas porque as ressacas, as tempestades, as trombas d’água, os furacões vão mudando a costa, a morfologia da região.
Em julho do ano passado, as enchentes do Rio Grande do Sul ajudaram a mudar rapidamente o formato da costa.
Se você quiser saber ainda mais sobre o assunto, nesta mesa redonda, dois professores, Naum Santana, geógrafo de formação, e Leonardo Monteiro, doutor em recursos hídricos, foram convidados a debater sobre quais as principais causas das enchentes na cidade de Joinville. O encontro foi mediado pela apresentadora Anna Bibow.
Produção: Milena Natali, Crislaine Moreira, Henrique Duarte, Yasmin Pohlmann, Bruna da Cunha e João Guilherme Nascimento.
Para além das explicações técnicas, os efeitos da tropicalização deixam rastros por onde passam. Marcas que ficam na memória de quem presenciou uma enchente, por exemplo. Pessoas que perderam móveis, lembranças e até ente queridos.
Em fevereiro de 1995, uma das maiores enchentes da história de Joinville, deixou cerca de 15 mil desabrigados, 5,7 mil desalojados e provocou a morte de três pessoas. Quase três décadas depois, a tragédia continua viva na memória dos moradores que enfrentaram dias de medo, perdas e solidariedade.
Maria Madalena Melo do Nascimento (imagem abaixo), hoje com 80 anos e aposentada, lembra com precisão o dia 9 de fevereiro de 1995, uma quinta-feira marcada por chuvas intensas. Na época, Maria morava com a família na região do bairro Jardim Sofia, uma das áreas mais atingidas, e comentou que, durante aquele mês, choveu todos os dias. Após chover um dia e uma noite inteira sem parar, a situação se agravou. “A gente não tinha base de enchente, não sabia que isso ia acontecer. Ninguém veio avisar”, conta.
Ela relata o resgate pelos bombeiros: “Fomos de barco, motor, até lá no meu cantinho, ali em cima no sinaleiro. A água levava tudo. Foi horrível, porque a gente saiu de barco e estava a máquina de lavar, tudo rodando aqui dentro. Era um mar”, e reforça que a tragédia poderia ter sido ainda pior se tivesse acontecido durante a noite. A casa de Maria, que serviu de ponto de apoio, acabou se tornando um dos primeiros postos de atendimento médico da região.
Ao lado dela, Tarcízio Frainer, hoje com 62 anos, também aposentado e morador de Joinville há quatro décadas, revive aqueles dias difíceis. Ele e a família perderam quase tudo. “Tive que sair nadando com meus dois filhos pequenos, o Jean e o Felipe, que na época tinham seis e sete anos. Coloquei eles em cima de uma laje para proteger”, conta.
Segundo ele, a enchente foi potencializada por falhas na infraestrutura. “O fluxo de água aumentou porque tinha uma barragem em Pirabeiraba e muita água.”
Tarcízio lembra que, apesar de outras enchentes já terem ocorrido na região, aquela foi a maior e, assim como Maria, destaca o esforço dos bombeiros e a força da comunidade. “Teve voluntários com barco, bombeiros. A comunidade se movimentou. Foi uma coisa fantástica. Solidariedade mesmo. Na minha casa, minha esposa era professora. No dia seguinte, todas as professoras que lecionaram com ela vieram com água, comida e ajudaram a limpar.”
Quando a água baixou, restou a destruição. Pertences de vários moradores foram parar em outras ruas ou ficaram enroscados na cerca. A enchente também levou gado, galinhas e destruiu plantações.
Elisa Muller, 41 anos, dona de casa e também moradora do Jardim Sofia, ainda era criança quando a enchente de 1995 aconteceu. Sem lembrar de muitos detalhes, ela relata as histórias que seus pais contavam, histórias essas que se assemelham às de Maria Madalena e Tarcízio: um misto de destruição, dor, solidariedade e perseverança.
Elisa relata que, de lá para cá, muitas enchentes aconteceram, não no nível da tragédia de 1995, mas o suficiente para trazer prejuízos e traumas. Qualquer chuva mais intensa na cidade faz as lembranças e o medo virem à tona: “Quando começa a chover muito, as lembranças vêm. Tanto que, hoje, quando vou para a praia, não entro na água. Não gosto de rio. Tenho pavor. Até esses tempos, queria atravessar a balsa, daí falei para os meus irmãos e meus cunhados: ‘Vocês vão, mas eu não quero. Não vou. Eu tenho pavor de água’”.
Essas questões psicossociais viraram tema de pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da estudante Camila Cordeiro da Silva, de 27 anos, moradora do bairro Itaum, na Zona Sul de Joinville. A escolha do tema é pessoal, afinal, com oito anos, acordou com água no colchão. A tragédia voltou a se repetir em 2019, quando a água chegou na janela da casa. “Deu tempo de tirar as portas, tirar as coisas do armário, levantar a máquina, levantar a geladeira. Então, deu para salvar bastante coisa”, recorda.
A estudante ainda enfatiza que, nessas situações, não só se perde bem materiais, mas também uma expectativa, uma esperança e uma história. “Tudo que a pessoa luta para ter, cada coisinha é perdida. Até o sentimento de pertencimento, porque muitas vezes a pessoa tem que sair daquele espaço que ela está e ir para outro espaço”, cita. Camila ainda relembrou que, em enchentes passadas, perdeu todas as fotos reveladas, e para ela, isso foi como uma perda de história.
Confira o relato em vídeo da estudante à repórter Suyane Urbainski e editado pela repórter Larrisa Hirt.
O maior impulso para a escolha da temática de monografia foram as tragédias no Rio Grande do Sul. Os caminhos, entretanto, tomaram outras rotas, fazendo com que Camila olhasse para as enchentes em Joinville. “Nunca passamos por uma tragédia tão grande quanto a que aconteceu no Rio Grande do Sul. Mas não significa que isso não possa acontecer. Então, esse olhar para cá também é uma forma de trazer informação para evitar que essa tragédia que aconteceu com os gaúchos chegue até a gente”, pontua.
Embora trate de impactos psicossociais, o recorte é sobre mulheres da região, muitas vezes mães-solos que e trabalham fora para sustentar uma família, como explicou a moradora da Zona Sul: “Imagina você viver com essa insegurança ou medo todos os dias de que a qualquer momento a sua casa pode ser atingida e você não ter para onde correr ou não saber o que fazer. Ou, às vezes, não saber até com quem contar, quando se mora sozinha, principalmente.”
Tanto moradores da Zona Sul quanto os da Zona Norte de Joinville guardam na memória os dramas vividos pelas enchentes que já acometeram a cidade. Anita Heinzen do Nascimento, de 65 anos, hoje aposentada, relembra com detalhes a enchente histórica de novembro de 2008. Na época, a cidade enfrentava um período prolongado de chuvas, que durou cerca de três meses. “Todo dia chovia. A gente via nos jornais que Itajaí, Brusque, Canelinha estavam alagadas, mas aqui os rios só enchiam e baixavam”, recorda.
Tudo mudou no dia 22 de novembro. Anita trabalhava à noite e, ao chegar em casa por volta das 5h30 da manhã, já notou a água invadindo a rua. “A previsão era de muita chuva, e realmente não deu trégua”, conta. Ela foi dormir e, ao acordar ao meio-dia, viu que as ruas estavam tomadas. “Não foi de uma vez, foi subindo devagar. A gente monitorava: colocava uma coisinha ali e, em meia hora, a água já tinha subido mais.”
A família morava nos fundos do terreno e, na frente, estava em construção. Com o neto Felipe, de pouco mais de um ano, Anita decidiu que a filha deveria sair com a criança, enquanto os adultos permaneciam para tentar proteger o que podiam. “Tínhamos esquadrias, portas, muita coisa que precisávamos subir. E também o medo de sair e a casa ser invadida”, desabafa.
Ela conta que, por volta do meio-dia, a água começou a entrar na casa. A família pediu socorro a parentes. “Um sobrinho veio ajudar e sugeriu: as mulheres saem e os homens ficam monitorando.” Enquanto isso, equipes de resgate, usando botes e caminhões grandes, circulavam pelas ruas. “Recolhiam idosos e acamados. Naquele tempo, eu ainda não era idosa”, brinca.
No fim da tarde, veio a ordem de evacuação. A travessia até o local onde conseguiram pegar um carro foi difícil e, na manhã seguinte, voltaram para ver a situação. “A água tinha baixado um pouco, mas ainda estava para baixo da cintura. Dentro de casa, entrou cerca de 30 centímetros. Parece pouco, mas faz uma bagunça inimaginável.”
A família contou com a sorte, pois não teve perdas financeiras elevadas. Os eletrodomésticos não foram afetados, mas as fotos antigas, que contavam a história da família, estavam dentro de um guarda-roupa, que não resistiu à enxurrada, indo embora com a água. As boas memórias registradas nas antigas fotos, ainda tiradas em filmes de rolo, ficaram somente na lembrança.
Se ainda não bastasse, Anita recorda o preconceito que muitos moradores da região enfrentaram depois da tragédia. “Ouvíamos: ‘Também, foram morar onde enche!’. Mas todo lugar estava cheio. Minha irmã, em Brusque, não conseguia nem ir trabalhar, mesmo sem ter água dentro de casa.”
Mais de 15 anos depois, as marcas da enchente de 2008 seguem vivas na memória da moradora: “Foi uma experiência que a gente nunca esquece.”
Hoje, as marcas físicas da enchente foram apagadas, mas as lembranças permanecem vivas na memória de quem sobreviveu, como um alerta sobre os riscos de ocupações irregulares e a importância de políticas públicas de prevenção a desastres.
Confira mais relatos de moradores sobre problemas ligados a alagamentos no vídeo produzido pela repórter Suyane Urbainski e editado por Patrick Cachoeira.
Foi só depois da vigésima hora de chuva que a água criou coragem de pedir desculpas.
— Eu não queria entrar.
— Mas entrou.
— Choveu demais. Eu tentei recuar, juro. Fiquei no limite, como sempre. Mas vieram as enxurradas, vieram as sarjetas entupidas, vieram os descuidos. E então… eu transbordei.
— Eu senti. Eu vi.
A casa estava no Jardim Sofia. Onde se vive há décadas com o cuidado de quem sabe o valor do que tem. Lá estavam os vizinhos: Maria Madalena, Tarcísio, os filhos pequenos, os móveis, a vida inteira empilhada entre cômodos. E de repente, “a água subiu de uma vez”.
— Foi em 1995.
— Foi. Numa quinta-feira, dia 9 de fevereiro. Chovia muito o mês todo.
A enchente hesitou.
— Ninguém me esperava. Nem eu.
— A gente também não sabia. “Não tinha base de enchente, né. Ninguém veio avisar…”
“Se fosse noite, a gente estava… Acordava na água.”
— Eu tentei parar. Mas a barragem… “era de pedra. Tiraram muita areia. O volume da água foi muito, ela desceu.” O fluxo veio direto pra cá. Rápido demais. Absurdo demais.
— Estava máquina de lavar, tudo rodando aqui. Deus, o que era um mar aqui?
Ela se lembrava do barulho. Dos armários. Dos barcos improvisados. Dos vizinhos salvando uns aos outros.
— Eu vi as crianças, eram os filhos dele…
— Eu também. “Tinha um pedacinho de laje. Joguei em cima o Jean e o Felipe.”
A água falou mais baixo:
— Eu invadi, mas fui empurrada. Fui mal conduzida. Fui ignorada quando pedi passagem.
A casa assentiu, sem querer dar razão, mas entendendo:
— E mesmo assim, a culpa pesa.
— Pesa. Porque fui eu que molhei as roupas. Eu que levei os móveis. Eu que enrosquei lembrança em cerca. “Tinha coisas que a gente não encontrou mais… Foi tudo.”
E então a casa lembrou:
— Mas teve ajuda.
— Teve. “Foi bem de solidariedade. As professoras vieram. Trouxeram água, ajudaram a limpar.”
Depois, vieram os outros.
— “Infelizmente… teve roubo também.”
— “A Prefeitura disse: vocês estão em área de risco.”
A enchente calou-se. Estava cansada. Como quem perde o fôlego depois de um erro antigo.
A casa, então, murmurou:
— Você não quis.
— Eu não quis.
Ali no Jardim Sofia, Maria e Tarcísio ainda vivem. Seguiram. Recolheram o que dava para recolher. E quando tudo secou, o que ficou foi história — e a certeza de que, mesmo sem querer, a água às vezes entra.
E que há casas que, mesmo feridas, escutam.
As fortes chuvas também podem afetar os moradores de outra forma, como no abastecimento de água e no tratamento de esgoto. Com 51% de cobertura de saneamento básico, a cidade lida com desafios operacionais e ambientais quando as águas sobem. Diego Brunelli Ghisi, gerente operacional de esgoto da Companhia Águas de Joinville, explicou como as inundações afetam a rede de coleta e tratamento e quais medidas estão sendo tomadas para mitigar os danos.
O município assegura que todo o volume coletado passa por tratamento antes de ser devolvido ao meio ambiente, atendendo aos parâmetros técnicos e legais de saneamento. No entanto, enchentes e alagamentos em Joinville impactam significativamente o sistema de coleta e tratamento de esgoto, conforme explica o gerente operacional.
A cidade opera com um sistema separador absoluto, no qual há uma rede: um sistema para água pluvial e outro sistema separado para o esgoto. No entanto, ligações irregulares — também conhecidas por ligações clandestinas — comprometem essa separação. “As águas que caem sobre os telhados das casas, sobre os jardins, acabam entrando no sistema e saturando ele nesses eventos de precipitações mais altas — chuva intensa.”
Em casos de alagamentos, essa sobrecarga de água, por conta das chuvas, entra pela própria conexão da rede e ocupa o espaço que deveria ser preenchido apenas pelo esgoto doméstico.
Os reflexos operacionais são diretos: aumento no consumo de energia elétrica, devido ao bombeamento de líquido além da capacidade projetada, e elevação no uso de produtos químicos nas estações de tratamento. “Toda essa sobrecarga gera mais resíduos e custos adicionais para o sistema”, conclui.
As consequências das enchentes no sistema de esgoto de Joinville não se restringem à infraestrutura municipal, mas podem atingir diretamente a população. Por se tratar de uma rede totalmente interligada, pode ocorrer o retorno do esgoto pelas conexões residenciais. O quadro mais grave se materializa quando há extravasamento nas vias públicas, com esgoto misturado à água da chuva inundando ruas e calçadas em decorrência das infiltrações indevida.
Para enfrentar o problema das conexões clandestinas, a Companhia Águas de Joinville tem um contrato de fiscalização que conta com oito equipes em campo. O processo de verificação utiliza testes com corantes e máquinas de fumaça para identificar direcionamentos incorretos de águas pluviais, vindo de calhas, ralos ou piscinas, para a rede de esgoto.
Quando detectadas irregularidades, a empresa emite um termo, estabelece prazo para adequação e oferece assistência técnica gratuita. Além da fiscalização, são realizadas oficinas e caravanas educativas. A Companhia mantém fiscais disponíveis cinco dias por semana, oito horas diárias, para orientar os moradores sobre a correta instalação das redes.
O trabalho inclui orientações prévias quando novas redes são ativadas, visitas domiciliares para avaliação de casos específicos e esclarecimentos técnicos sobre a obrigatoriedade de separação entre redes de esgoto e pluviais. A estratégia pretende garantir que todo o esgoto doméstico seja direcionado à rede coletora, enquanto as águas pluviais sigam exclusivamente para as galerias próprias. Essas medidas são fundamentais tanto para manter a eficiência do sistema quanto para proteger a saúde pública da cidade.
Nem sempre quem faz a ligação irregular de água da chuva na rede de esgoto é quem sofre as consequências. Como a rede é interligada, moradores de regiões mais baixas podem ser os mais afetados. “A rede fica tão saturada que há refluxo para dentro das casas. Às vezes, o morador não consegue nem dar descarga”, explica o técnico.
Além do retorno pelo vaso sanitário, pode acontecer o extravasamento de esgoto nas calçadas e ruas. Isso acontece porque a água da chuva, ao ser lançada na rede de esgoto, aumenta consideravelmente o volume, sobrecarregando o sistema. Para a Companhia, os prejuízos incluem mais gastos com caminhões de limpeza, energia elétrica para bombeamento e produtos químicos nas estações. “A estação deveria tratar só esgoto, mas acaba tratando também uma grande carga de água da chuva”, resume o especialista.
A sobrecarga da rede de esgoto pode, sim, levar ao extravasamento nas vias públicas, especialmente durante chuvas intensas. Segundo o engenheiro, a rede opera normalmente com uma folga, que permite a passagem de gases e variações no volume de esgoto. No entanto, quando essa folga é ocupada pela água da chuva, o sistema atinge sua capacidade máxima. “Depois que esse espaço extra é preenchido, o excesso começa a subir, como em vasos comunicantes, e acaba extravasando para calçadas e ruas”, explica.
O risco é ainda maior nos horários de pico, quando o uso residencial do sistema aumenta. Entre meio-dia e duas da tarde e das seis às oito da noite, o volume de esgoto cresce devido ao uso doméstico mais intenso, como banhos, refeições e descargas, o que, somado à água da chuva, agrava ainda mais a situação.
A sobrecarga da rede de esgoto durante fortes chuvas é monitorada em tempo real pelo Centro de Informações Operacionais (Ciop) da Companhia. O setor funciona ininterruptamente com apoio de telemetria e outros equipamentos.
Por meio do Ciop é possível acompanhar o desempenho das mais de 150 estações elevatórias espalhadas por Joinville — estruturas responsáveis por bombear o esgoto coletado. O centro também atua na coordenação de medidas preventivas e corretivas, além de atender reclamações da população. “O Ciop direciona ações, abre ordens de serviço e responde rapidamente aos impactos causados por chuvas intensas”, afirma Diego.
Atualmente, de acordo com Lucas Emanuel Martins, engenheiro sanitarista e gerente de água da Companhia Águas de Joinville, o abastecimento na cidade alcança uma cobertura de 99,2%. São 262 pontos de monitoramento distribuídos pela rede e nas residências, que garantem que mais de 99,9% das amostras atendam aos parâmetros exigidos.
Joinville conta com duas Estações de Tratamento de Água (ETA). A estação do Cubatão produz cerca de 1,7 mil litros por segundo e abastece 75% da cidade. Já a estação do Piraí responde os outros 25%, com uma produção de aproximadamente 500 a 550 litros por segundo.
Há 13 reservatórios setoriais, que recebem água das estações via adutoras, são eles que distribuem água para a população. Porém, em períodos de chuvas intensas, o sistema de captação de água em Joinville também enfrenta desafios. Na estação do Cubatão, a estrutura de contenção pode ser afetada pelas fortes precipitações, o que já resultou em perdas no nível de captação. Já na estação do Piraí há registros de bloqueios temporários na captação durante momentos de enxurradas.
Além disso, o aumento súbito da turbidez — o quão “turva” ou “suja” a água parece — no Piraí pode levar à necessidade de redução da produção, para garantir a qualidade da água distribuída, embora sem interrupções totais no abastecimento.
Mesmo diante de eventos como chuvas intensas ou aumento súbito da turbidez da água bruta, o impacto para o morador tende a ser mínimo. Segundo o gerente de operação de água da Companhia Águas de Joinville, a empresa consegue, na maioria das vezes, equilibrar o sistema utilizando a estação do Cubatão, que atende cerca de 75% da cidade.
A flexibilidade operacional permite redirecionar água entre setores reversíveis da rede de abastecimento, reduzindo o risco de desabastecimento. Caso ocorra algum impacto, ele costuma ser pontual, como a redução de pressão ou ausência temporária de água nos horários de pico. No entanto, a situação geralmente se normaliza durante a madrugada, quando o consumo diminui e os reservatórios domésticos voltam a encher.
Em dias de temporal, essa dinâmica tende a ser ainda menos crítica, já que o consumo naturalmente cai. “As pessoas não lavam calçadas, não estendem roupa. Isso nos ajuda porque o sistema é menos exigido”, explica Lucas. Para mitigar os riscos operacionais, a Companhia afirma investir fortemente na modernização de suas estações.
A ETA Piraí, por exemplo, está passando por um projeto de reestruturação avaliado em R$ 42 milhões. As melhorias incluem quatro novas unidades de filtração, uma estação de bombeamento da captação para a lagoa de decantação, um novo reservatório de água tratada com capacidade de 6 mil metros cúbicos e a automação de diversos processos.
Na ETA Cubatão, os investimentos ultrapassam R$ 11,8 milhões, voltados à modernização dos sistemas de filtração, decantação e bombeamento. Segundo o engenheiro sanitarista, o objetivo é “garantir mais segurança operacional e manter o abastecimento da cidade estável, mesmo diante de situações adversas.”
Durante uma enchente, embora não exista um limite exato de turbidez que inviabiliza o tratamento da água, a resposta operacional das estações de tratamento varia bastante conforme a estrutura de cada uma. Segundo Martins, a ETA Cubatão apresenta uma maior tolerância a oscilações na turbidez da água bruta e, raramente, precisa reduzir sua produção por conta disso.
Já a ETA Piraí é mais sensível. Isso se deve à sua configuração técnica atual, que ainda permite que parte da água bruta vá diretamente para a etapa de filtração, sem passar antes por processos de decantação, algo viável apenas quando a qualidade da água está muito boa. Em situações de turbidez elevada, esse caminho direto precisa ser interrompido, obrigando a operação a se restringir à água que pode passar pela lagoa de floculação e decantação. Isso causa uma redução momentânea da produção. Com a modernização da estação do Piraí, no entanto, essa limitação deve ser superada.
Sobre o controle da qualidade da água tratada, Lucas destaca que o monitoramento é constante, tanto em dias normais quanto em eventos climáticos extremos, como enchentes. “A gente segue o que determina a Portaria 888 do Ministério da Saúde, que estabelece os padrões de potabilidade da água. Todo o processo de monitoramento é contínuo e independente de chuva ou seca”, explica. Esse controle envolve análises laboratoriais periódicas e sistemas de sensores que acompanham parâmetros como pH, turbidez, cor, cloro residual e presença de microrganismos, assegurando que a água distribuída esteja sempre dentro dos padrões de segurança para consumo.
Durante chuvas intensas, o que ocorre é uma transformação rápida e significativa na qualidade da água bruta que chega às estações de tratamento. Isso se dá principalmente por conta do aumento da turbidez, ou seja, da quantidade de sólidos em suspensão na água do rio, como argila, areia, matéria orgânica e outros resíduos trazidos pela enxurrada nas bacias hidrográficas.
Segundo o gerente, quando a turbidez da água aumenta, o trabalho nas estações de tratamento muda completamente. “É preciso ajustar todas as quantidades de produtos usados, como o coagulante”, explica. O coagulante é uma substância que ajuda a juntar as sujeiras e impurezas da água em pequenos flocos. Esses flocos ficam mais pesados e afundam até o fundo dos tanques, facilitando a limpeza da água. Mas, quando a água chega muito barrenta ou cheia de sedimentos, esses ajustes precisam ser feitos com rapidez e precisão. Isso torna o processo mais complicado e exige ainda mais atenção dos técnicos.
Além dos materiais em suspensão, há também os chamados sólidos grosseiros – como galhos, folhas, pedras e até lixo, que não chegam a entrar no processo de tratamento, mas podem parar no gradeamento (estrutura que funciona como um filtro na entrada da estação).
Em casos mais severos, esses detritos podem entupir o sistema de captação, como já aconteceu na ETA Piraí, exigindo a intervenção manual das equipes de operação para liberar a entrada de água. Apesar de todos esses desafios, Martins afirma que esse tipo de situação não está diretamente relacionada à ação humana cotidiana, como o uso de água pelas residências. “Não tem correlação com a ação antrópica. É uma resposta natural do ambiente quando há uma precipitação muito intensa sobre a bacia hidrográfica”, explica.
Da mesma forma que os eventos de fortes chuvas podem afetar os serviços de água e esgoto, o descarte incorreto de lixo pode prejudicar a drenagem na cidade. Os resíduos sólidos urbanos têm se consolidado como um dos agravantes das enchentes. Desde os mais problemáticos, como sacolas plásticas, garrafas PET, latinhas e garrafas de vidro, até móveis e demais rejeitos, quando depositados de forma incorreta, são facilmente arrastados pela água da chuva e acabam obstruindo bocas de lobo, valas e canais.
Segundo o engenheiro sanitarista Filipe Gonçalves, essa obstrução compromete significativamente o sistema de drenagem urbana, reduzindo sua capacidade de escoamento, uma vez que ambos compõem o sistema de drenagem urbano, favorecendo o escoamento da chuva até o rio ou mar.
Além do excesso de lixo gerado pela cidade, um dos agravantes é como ele é descartado, tendo como um dos maiores obstáculos a sensibilização da população adulta sobre a correta separação e destinação dos resíduos.
“Políticas públicas de reciclagem, logística reversa e separação correta dos resíduos domiciliares são as mais eficazes no descarte inadequado de lixo”, destaca. Muitos dos materiais recicláveis são descartados junto à coleta convencional, além de misturas como restos de alimentos e papel higiênico, tornando o material impróprio para a separação.
O lixo ainda pode ter influência sob as enchentes com os gases emitidos. Como explicou o meteorologista Mário Francisco Leal de Quadro, isso está contribuindo com a questão do aquecimento global: “Com a população aumentando, a produção de lixo cresce consequentemente, e se não acontece uma adaptação à situação, o dano futuro é grave”.
Em Joinville, a coleta de resíduos sólidos, tanto comuns quanto recicláveis, é realizada convencionalmente, no caso, de caminhão, de porta em porta. De acordo com o Instituto Água e Saneamento, 100% da população é atendida por coleta domiciliar. Segundo a prefeitura de Joinville e a Secretaria de Infraestrutura Urbana (Seinfra), a meta é aumentar o índice de eficiência da segregação de resíduos recicláveis. Esta é uma medida que avalia a capacidade de um sistema de gestão de resíduos em separar e coletar corretamente os materiais recicláveis, de 22% para 24% neste ano de 2025.
Uma das alternativas adotadas pela prefeitura é o Programa Lixo Zero, que propõe um novo olhar sobre o lixo produzido diariamente. A ideia central do programa é reduzir a geração de resíduos, visando orientar as pessoas e a sociedade a mudarem seus estilos de vida para incentivar os ciclos naturais sustentáveis.
O programa Lixo Zero, fundado em 2010, abrange mais de 300 municípios do Brasil, incluindo Joinville. Em outubro de 2024, ocorreu a 11ª edição da semana Lixo Zero, com diversas ações promovidas em parceria com secretarias municipais e entidades da sociedade civil. Pontos de coleta específicos foram espalhados pela cidade, recebendo desde lixo eletrônico até óleo de cozinha usado. A campanha também reforçou a importância da responsabilidade individual na manutenção de uma cidade limpa e mais segura.
Essas iniciativas são complementadas pelo trabalho constante de limpeza de rios, canais e valas. Uma das principais medidas preventivas que podem ser adotadas, segundo o engenheiro sanitarista, é antes da alta temporada de chuvas, o setor de obras do órgão público desobstruir todas a bocas coletoras, pois o sistema de drenagem urbana não é projetado para receber resíduos sólidos.
Desde 2021, a prefeitura afirma já ter limpado cerca de 400 quilômetros de cursos d’água, retirando aproximadamente 20 mil toneladas de entulho e lixo por ano.
As repórteres Camila Vieira e Caroline de Apolinário fizeram um levantamento das ações que todas as gestões municipais realizaram desde a enchente de 1995. Confira na linha do tempo abaixo.
As questões ambientais vão além dos programas de reciclagem de materiais. Um relatório de 2019 da Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou que o número de leis ambientais aumentou 38 vezes desde 1972. No Brasil, as leis se dividem em níveis municipais, estaduais e federal. As principais normas referem-se às questões de meio ambiente, código florestal, crimes ambientais e política nacional de recursos hídricos, estabelecendo regras e responsabilidades para empresas, poderes públicos e cidadãos.
Segundo Luiz Fernando Borges, mestre em Direito pela UFSC e pesquisador em Criminologia Verde e Direito Ecológico, a Lei nº 12.608/2012, que cria a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, define responsabilidades para prevenir e reduzir os danos causados por desastres, como enchentes. Essa lei obriga os órgãos públicos a considerar os riscos antes de aprovar empreendimentos e a exigir planos de emergência sempre que houver perigo de desastres.
Luiz explica que áreas com risco de desastre, como as de preservação permanente, normalmente não podem ser ocupadas. Essas áreas são protegidas por razões ambientais, de segurança hídrica e estabilidade do solo. No entanto, em casos específicos e mediante processo de regularização fundiária, a ocupação pode ser permitida caso sejam feitas obras que controlem ou eliminem os riscos.
Do ponto de vista legal, o especialista afirma que “a população pode exigir que o poder público fiscalize ocupações irregulares“. Após respeitar o direito de defesa, o governo pode até remover e demolir construções ilegais, mas também tem o dever de garantir a realocação das famílias afetadas. O Ministério Público pode ser acionado para cobrar essas medidas, tanto por via administrativa quanto judicial.
A Constituição Federal, em seu artigo 225, estabelece punições para quem desmata áreas protegidas. Essas penalidades podem ser criminais, administrativas e civis. Por exemplo, uma empresa que desmate manguezais ou matas ciliares — que ajudam a prevenir enchentes — pode sofrer desde multas e perda de licença ambiental até processos criminais e ações de reparação do dano.
Conforme a legislação, o desmatamento de Áreas de Preservação Permanente (APPs) é severamente punido. A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) e o Decreto nº 6.514/2008 preveem multas de até R$ 50 milhões, interdições e demolições. Quem desmata sem autorização pode pegar até três anos de prisão, além de ter que restaurar o meio ambiente conforme o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012).
Os municípios também têm responsabilidades legais. Devem mapear áreas de risco, monitorar eventos climáticos, implantar sistemas de alerta e preparar planos de emergência. Além disso, precisam fiscalizar o uso do solo, estruturar a defesa civil e promover ações educativas. A Justiça reconhece a responsabilidade dos municípios quando não agem para evitar enchentes ou não fazem obras necessárias, como drenagem de águas da chuva.
Quando o poder público não age, o Ministério Público ou associações civis podem entrar com ações na Justiça exigindo a desocupação de áreas de risco e a implementação de medidas de prevenção. Qualquer cidadão também pode mover uma ação popular, se houver ameaça ao meio ambiente, ao patrimônio público ou à moralidade administrativa. E, caso alguém sofra prejuízos por conta de enchentes causadas por omissão do governo, é possível pedir indenização por danos materiais e morais — desde que se comprove a relação entre a omissão e o prejuízo.
No caso específico de Joinville, a prefeitura criou uma seção no site oficial chamada “Registrar danos e/ou prejuízos causados por desastres naturais”, onde os moradores podem preencher um formulário. No entanto, essa ferramenta tem sido criticada por sua acessibilidade limitada. Elisa, moradora do bairro Jardim Sofia, afirmou: “Meus pais, que também foram afetados pelas enchentes, nem saberiam por onde começar, mesmo que soubessem da existência do site”.
Para ela, a limitação do serviço ao formato digital prejudica especialmente pessoas idosas ou com pouca familiaridade com a tecnologia.
O episódio conta com a participação de Marcos Schutter e Virgínia Grace Barros, em uma mesa redonda sobre as enchentes em Joinville. Além dos impactos causados pelas cheias, os especialistas discutem com o repórter Rodrigo Santana legislações ambientais e urbanísticas. Soluções como o conceito de cidades esponja, a ampliação de áreas verdes e sistemas de drenagem sustentável são apresentadas como estratégias eficazes.
Produção: Luana Alves, Rodrigo Santana, Sarah Falcão, Stefani Junge, Éllen Gerber, Maria Eduarda Alecrim e Julia Balsanelli.
Joinville iniciou, há mais de uma década, as obras de macrodrenagem do Rio Mathias. O objetivo é reduzir a possibilidade de alagamentos na área central da cidade, por meio da retenção das águas nas galerias e do bombeamento do excedente para o Rio Cachoeira. A previsão inicial de conclusão era para 2016. Entre 2014 e 2020, a Prefeitura recebeu R$ 26 milhões do governo federal para a continuidade da obra, ainda durante a gestão do ex-prefeito Udo Döhler. No entanto, os trabalhos foram paralisados no final de 2020.
Ao assumir o governo em 2021, o prefeito Adriano Silva alegou que a retomada das obras depende de novas perícias. No entanto, a licitação para essa perícia foi lançada apenas no fim de 2022, com previsão de início para 2023. Até o momento, o processo segue parado, à espera de nova licitação. Estima-se que cerca de 70% da obra tenha sido executada, mas o avanço segue travado por questões burocráticas.
Por outro lado, de acordo com informações divulgadas pela Prefeitura de Joinville, o município, por meio da Secretaria de Infraestrutura Urbana (Seinfra), realiza desde 2021 um trabalho permanente de limpeza de rios, valas e canais. Em três anos, foram limpos 648 quilômetros de cursos d’água e retiradas mais de 50 mil toneladas de materiais.
Segundo Diego Brunelli Ghisi, gerente operacional de esgoto da Companhia Águas de Joinville, um dos grandes empecilhos na cidade é a utilização clandestina e inadequada da rede pluvial, acarretando dois tipos de problemas: a sobrecarga dos esgotos com água que não deveria utilizar a rede e, consequentemente, o segundo problema, sendo o acúmulo dessa água, transbordando não só a água, mas também o lixo e as sujeiras que possam existir na rede.
Para Ghisi, é essencial que o tratamento e o destino da água da chuva ocupem caminhos diferentes. Segundo ele, Joinville está preparada para isso, pois atua no modelo de separador absoluto, em que há uma infraestrutura específica para coletar exclusivamente o esgoto sanitário — esse, sim, encaminhado para a estação de tratamento — enquanto a água da chuva é conduzida por outra rede, a pluvial, direcionada diretamente aos corpos receptores, como rios e, em alguns casos, o mar.
Ainda assim, há muitos casos de clandestinidade, como conexões irregulares, onde a água de calhas e telhados vem sendo destinada à tubulação de esgoto. “Você imagina um telhado de 120 metros quadrados, recebendo uma chuva de 50 milímetros no final de tarde aqui de Joinville. Uma casa está contribuindo com muitos litros por segundo naquele momento”, afirma Ghisi. Esse fator, replicado para vários imóveis com ligações irregulares, contribui para uma sobrecarga na rede, refletindo diretamente no extravasamento nas vias públicas, especialmente durante chuvas intensas.
Conforme o engenheiro, a rede opera normalmente com uma folga, que permite a passagem de gases e variações no volume de esgoto. No entanto, quando essa folga é ocupada pela água da chuva, o sistema atinge sua capacidade máxima. “Depois que esse espaço extra é preenchido, o excesso começa a subir, como em vasos comunicantes, e acaba extravasando para calçadas e ruas”, explica.
Joinville afirma ter 51% de saneamento básico, um índice ainda abaixo da meta nacional, que está em 55%. Porém, o intuito é alcançar 90% de cobertura até 2033, conforme estabelecido pelo Marco Legal do Saneamento Básico.
Segundo a Companhia Águas de Joinville, para 2025, a previsão é continuar a ampliação das redes nos bairros Jardim Paraíso, Jardim Sofia, Vila Cubatão, Guanabara, Fátima, Petrópolis, Itaum, Santa Catarina, João Costa, Parque Guarani, Boehmerwald, Vila Nova, Morro do Meio e Floresta, onde as obras devem iniciar até o final do primeiro semestre.
Ghisi ainda aponta o monitoramento realizado em tempo real pelo Centro de Informações Operacionais (Ciop) da Companhia e a possibilidade de acompanhar o desempenho das mais de 150 estações elevatórias espalhadas por Joinville. O centro atua na coordenação de medidas preventivas e corretivas, além de atender reclamações da população.
A Prefeitura de Joinville também diz realizar a fiscalização do sistema de esgoto, que já vistoriou 84% das ligações ativas da cidade. A equipe vai até os imóveis, realiza testes com corante e máquina de fumaça e emite o termo da primeira vistoria. Desse total, 73% das ligações estão regulares, mas 11% ainda apresentam irregularidades.
O serviço de perfilamento e dragagem do rio Águas Vermelhas, que iniciou em 2023, teve sua execução finalizada agora, em maio de 2025. Essa ação se fazia necessária para mitigar o extravasamento do canal do rio pelas águas das chuvas, prevenindo alagamentos nos bairros da região oeste de Joinville, como Vila Nova, Glória, São Marcos, Nova Brasília e Morro do Meio.
Segundo a prefeitura, foram dragados do leito do rio o equivalente a 500 mil metros cúbicos de sedimentos, além de melhorias nas margens, abrangendo 10,6 quilômetros de extensão, com aumento das encostas naturais em até seis metros de altura em alguns trechos. Parte do material retirado foi depositada em áreas de terraplenagem, com diques de contenção.
Outro ponto contemplado foi o replantio de 22,7 mil mudas nas margens do rio Águas Vermelhas, sendo cerca de 5 mil mudas de espécies nativas ameaçadas de extinção. O intuito é recuperar parte da área nativa do rio e fazer surgir uma nova floresta, além de evitar a erosão do solo e um possível assoreamento do rio.
Outro projeto em andamento, em parceria com o governo federal, prevê a execução de uma galeria de macrodrenagem no Rio Jaguarão, com investimento estimado em R$ 206 milhões. A galeria terá seis metros de largura por cinco metros de altura, com início na rua Bahia e desaguando no fim da rua Affonso Pena. Um termo de compromisso com a União foi assinado em novembro de 2024, e a Prefeitura está na fase de levantamento de documentação.
Também estão em fase inicial os estudos de novos Planos Diretores para as bacias dos rios Cachoeira, Piraí, Cubatão, além das vertentes leste e sul da cidade. Outro instrumento em elaboração é o Plano Municipal de Gestão de Risco de Desastres, que deve ser finalizado ainda em 2025. O plano deverá propor medidas e ações para a gestão eficiente dos riscos, com indicações de estudos, intervenções físicas e ações educativas voltadas à percepção de riscos.
Além disso, a Prefeitura implantou o envio de mensagens de alerta para os telefones celulares dos moradores de Joinville, informando sobre a possibilidade de chuvas, níveis de gravidade e orientações sobre as ações a serem tomadas.
A cada novo recorde de temperatura, o discurso negacionista sobre a crise climática fica cada vez mais insustentável. Ainda assim, muitas vezes esse discurso aparece disfarçado de um otimismo ingênuo ou de uma indiferença que acoberta as desigualdades sociais.
Esse negacionismo — disseminado principalmente por interesses econômicos e políticos — atrasou a implementação e execução de medidas eficazes para conter a destruição ambiental. Tais como a transição para fontes de energia limpa e regulamentações mais rígidas contra o desmatamento e principalmente o auxílio na diminuição da emissão de gases de efeito estufa.
O negacionismo climático é confortável e conveniente para aqueles que não sofrem diretamente com suas consequências imediatas. Enquanto parte da população segue sua rotina “aproveitando” o calor em espaços climatizados, recorrem às praias e seguem suas rotinas sem grandes mudanças, o outro lado da população enfrenta jornadas cada vez mais insalubres e precárias, seja trabalhando debaixo do calor extremo de 40°C ou tentando se ventilar em um ônibus lotado.
Está cada vez mais crítico aplicar soluções reais capazes de frear a aceleração do aquecimento global. Sem esquecer também, é claro, que vemos a elite econômica buscando “alternativas” fora do planeta. Aqueles que detêm o poder do mundo nas mãos se concentram em estratégias de escape da realidade em viagens programadas em direção a Marte, já se esquecendo da “própria casa”. Em novembro, uma pesquisa realizada pela Oxfam apontou que bilionários emitem mais carbono em 90 minutos do que uma pessoa comum na vida inteira. Como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres: “Os ricos causam o problema, os pobres pagam o preço mais alto”.
Segundo dados do serviço europeu Copernicus, o ano de 2024 foi o mais quente catalogado no planeta Terra em 175 anos de registro científico. Os efeitos no dia a dia são cada vez mais visíveis, sendo sentidos pela maioria da população pobre. Às vezes, o trabalhador deposita sua esperança na chuva para aliviar o calor, mas esta, às vezes, transborda os rios (antes secos), transforma as ruas em um cenário devastado pelas enchentes e destrói as residências. Eis quem diga que esses são resultados de uma natureza que retomando o que um dia foi dela.
O colapso climático está aqui, transformando a realidade e estabelecendo quem sofre e quem pode sobreviver. Até quando vamos pensar no futuro como uma desculpa e abandonar o presente?
Joinville tem se afogado. Literalmente. A cada chuva mais intensa, ruas viram rios, casas se perdem na correnteza, e a cidade parece pedir socorro. A pergunta que incomoda é: por que a maior cidade de Santa Catarina não consegue respirar quando chove?
A resposta está menos nas nuvens e mais no solo. A enchente é o sintoma, não a doença. O problema é antigo, mas se agravou com escolhas humanas — e desumanas. Avançamos sobre os manguezais, canalizamos os rios, trocamos árvores por concreto e impermeabilizamos o que antes era permeável. A natureza não deixou de avisar, mas ignoramos os sinais.
Joinville nasceu entre a mata e o mar. Mangues, rios e morros fazem parte da geografia natural que um dia acolheu os primeiros habitantes. Mas a pressa do crescimento urbano, somada à lógica do lucro a qualquer custo, transformou a cidade em um palco de desequilíbrios. Hoje, a conta chegou — e ela vem em forma de enxurrada.
É fácil culpar a chuva. Difícil é encarar a nossa própria responsabilidade. A cada árvore arrancada para dar lugar a um estacionamento, a cada loteamento autorizado em área de risco, a cada legislação ambiental flexibilizada, damos mais um passo rumo ao caos. E, enquanto isso, quem mora nas periferias — onde o Estado raramente chega com estrutura — sente na pele (e nos pés molhados) o peso do abandono.
Este artigo é um complemento de uma análise que aponta para as questões político-sociais que agravam o problema. Mas aqui o foco é outro: é a nossa desconexão com a terra, com os ciclos naturais, com a própria ideia de limite. Estamos colhendo os frutos podres de um modelo que enxerga o meio ambiente como obstáculo e não como base da vida.
Talvez o caminho de volta passe por ouvir mais os especialistas e menos os empreendedores do “progresso rápido”. Por proteger o que resta da mata atlântica urbana, por recuperar nascentes e repensar nosso jeito de habitar a cidade. O futuro de Joinville não pode ser apenas uma disputa por asfaltos e viadutos — precisa ser um pacto com a natureza.
Porque, no fim das contas, a água sempre encontra um caminho. A questão é: queremos que ela corra livre pelos rios… ou invada nossas salas?
Primeira Pauta é o jornal-laboratório produzido pelos estudantes do curso de Jornalismo da Faculdade Ielusc.
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