Como os animais transformam a vida de seus tutores
Matéria explora a presença emocional dos pets, seus impactos práticos e a redefinição contemporânea de “família”
Por Brendha Souza
A presença de animais dentro dos lares brasileiros já não pode ser tratada apenas como afeto espontâneo. À medida que animais assumem funções emocionais e estruturais antes reservadas a vínculos exclusivamente humanos, a chamada família multiespécie se consolida como um fenômeno social relevante e em plena expansão. A tendência atravessa gerações, classes e estilos de vida e revela uma reorganização afetiva que responde tanto a mudanças demográficas quanto a fragilidades contemporâneas, como o aumento de estados depressivos, a solidão urbana e a instabilidade laboral.
Entre jovens adultos que atravessam transições de estudo e trabalho, a adoção de um animal frequentemente surge como um ajuste prático à vida em formação. A estudante Natalia Rodriguez, mãe de um gato, resume essa lógica com simplicidade e sinceridade. “A rotina muda, mas muda pra melhor. O carinho do Ozzy é genuíno, e sinto que não estou mais sozinha. É uma presença leve, que ocupa exatamente o espaço que eu consigo oferecer”, afirma. Para Natalia, o vínculo não é substitutivo; é uma reorganização emocional que permite manter autonomia sem abrir mão do afeto.

Em lares em que responsabilidades se acumulam, a presença de um animal altera dinâmicas e prioridades. Natany Priscila, que cuida de uma cadela idosa e de uma filha pequena, descreve esse desafio sem idealizações. “Extremamente difícil, porque no meu caso, que eu trato minha cachorrinha Meg como uma filha, membro da família, mas ela é muito brava, então tem que existir uma separação de espaços e atividades, o sentimento de culpa é extremo o tempo todo, porque com certeza eu dou mais atenção para minha filha agora e tento ficar sempre equilibrando, assim, me desdobrando para dar atenção para todas, de certa forma, até tira um pouquinho da qualidade de vida que ela [a Meg] tinha dentro de casa.” A observação liga cuidado afetivo a escolhas práticas. Natany recomenda adoções pensadas, preferencialmente de animais adultos, porque a experiência reduz demandas e facilita a convivência com crianças. “Se for falar em adoção, tem muito cachorrinho adulto precisando de um lar, então assim, eu até indicaria, se eu fosse adotar hoje, eu não adotaria mais filhotes, eu adotaria um cachorro já na fase adulta.”

No consultório, veterinária e técnico precisam transpor o afeto para práticas que garantam a saúde do animal. A veterinária Laís Gastaldon, pessoa com deficiência e tutora de um cachorro de serviço, observa que o fenômeno da família multiespécie trouxe avanços e também responsabilidades claras. “O conceito de família multiespécie tornou-se cada vez mais presente, refletindo a ideia de que os pets ocupam um lugar afetivo e social semelhante ao de um membro da família. Hoje, muitos animais são tratados como ‘filhos’, recebendo cuidados antes restritos apenas aos humanos, como exames de rotina, acompanhamento veterinário frequente e investimentos em alimentação de qualidade, incluindo a Alimentação Natural.” Ao mesmo tempo, Laís alerta para as fases da vida que exigem preparo adicional. “Quando os animais envelhecem, novas demandas surgem: doenças crônicas, limitações físicas e necessidade de maior acompanhamento veterinário. Infelizmente, é nesse estágio que cresce o índice de abandono, seja por falta de condições financeiras, falta de tempo ou simplesmente pela dificuldade em lidar com os cuidados extras.”
A dimensão clínica e a dimensão afetiva se cruzam em decisões cotidianas. Saúde preventiva, vacinação, controle parasitário e nutrição adequada deixam de ser recomendações marginalizadas e passam a integrar a rotina familiar. Laís lembra que a adoção responsável envolve projeções de longo prazo e planejamento. “A principal orientação é: reflita profundamente sobre a responsabilidade que envolve ter um animal. Adotar não é apenas acolher um pet porque ele é bonito ou carinhoso, mas assumir um compromisso que envolve tempo, paciência, disposição emocional e recursos financeiros.”

Em muitos casos, o animal assume papel de apoio emocional em situações marcantes da vida. Silvana, 59 anos, conta que adotou Cindy após o falecimento do marido para enfrentar o vazio de uma casa que se tornou silenciosa. “Eu levantava e não tinha mais ninguém pra perguntar como dormi. A Cindy mudou isso. Ela não preenche o lugar do meu marido, mas preenche a casa. E isso faz diferença”, diz. A leitura psicológica confirma que, para idosos, a convivência com um animal pode significar manutenção de rotina, sensação de segurança e estímulo para sair de casa e interagir com vizinhos e serviços.

A psicóloga Juli Batista devolve ao tema uma perspectiva que mistura alívio e advertência. “Existe o lado em que o animal supre pro lado do bem, quando uma pessoa vive um luto ou tem uma carência e consegue sentir esse carinho, essa proteção que ela oferece ao bichinho, mas também se sente protegida.” A colocação é seguida de um alerta preciso. “Tem o lado negativo, que é quase uma codependência emocional, porque aquele animal vira tudo pra ela, então ela começa a perder a razão entre o que realmente é um bichinho de estimação e um ser humano. Com o aumento das doenças psicológicas, isso cresceu de uma forma bem grandiosa.”
O tensionamento entre benefício e risco aponta para necessidades concretas. Educação de tutores, políticas públicas que facilitem acesso a cuidados veterinários, campanhas de conscientização sobre fases da vida animal e apoio social a famílias em vulnerabilidade são medidas que especialistas consideram urgentes. Clínicas que oferecem parcelamento de tratamentos, postos de saúde que incluam orientação básica sobre zoonoses e alimentação e grupos comunitários de cuidado coletivo aparecem como respostas práticas a esse fenômeno.
No fim, a família multiespécie revela menos sobre os animais do que sobre as maneiras como a sociedade contemporânea procura acolhimento. Esses vínculos mostram a capacidade humana de reconstruir laços diante de perdas, a vontade de cuidar e a necessidade de limites técnicos que garantam saúde e bem-estar. O reconhecimento é duplo. A afeição é legítima e transformadora. A responsabilidade é inadiável. Em casas espalhadas pelo país, pessoas e animais continuam aprendendo, aos poucos, a dividir espaço, tempo e afeto de forma que ambos saiam, sempre que possível, melhores.