Superlotação e condições precárias no sistema prisional de SC condenam estado em R$ 800 mil
Sentença foi proferida após denúncia de irregularidades no Presídio Regional de Joinville, que apresentava superlotação de 160% e condições insalubres para os detentos.
O sistema prisional brasileiro continua a enfrentar sérios problemas de superlotação e condições desumanas, e a situação do Presídio Regional de Joinville, em Santa Catarina, é um reflexo alarmante dessa crise. A unidade prisional, com capacidade para 645 detentos, chegou a abrigar 1.033 presos, uma taxa de ocupação 160% superior à sua capacidade. A superlotação gerou condições precárias que colocaram em risco a saúde e os direitos dos detentos, com relatos de surtos de doenças como piolho e sarna, infestação de pragas e falta de itens essenciais, como talheres, roupas de cama e banho. A insalubridade e a falta de ventilação adequada agravaram ainda mais o cenário, configurando uma violação dos direitos humanos dos presos.
Em 2024, após um processo judicial que durou mais de uma década, o Estado de Santa Catarina foi condenado a pagar R$ 800 mil em danos morais coletivos, em razão das condições do presídio. A condenação veio como resultado de uma ação movida pelo Ministério Público de Santa Catarina, que denunciou as falhas estruturais e as péssimas condições de vida dentro da unidade.
O valor da indenização será revertido ao Fundo Penitenciário, com o objetivo de melhorar o sistema carcerário do estado e evitar que episódios como esse se repitam. O governo de Santa Catarina, por meio de uma nota oficial, confirmou que cumprirá a sentença e destacou que os fatos em questão não envolvem a gestão atual, mas remontam a 2013. A nota do governo esclarece:
A condenação do Estado de Santa Catarina evidencia a urgência de reformas no sistema carcerário, que continua a enfrentar sérias falhas estruturais e a violação dos direitos fundamentais dos detentos. A superlotação e as condições precárias em unidades como a de Joinville são sintomas de um problema maior e mais complexo que exige uma reforma profunda e eficaz.
Desafios e propostas para o sistema prisional
Victor Scheuer, secretário da Comissão de Direito Criminal e Assuntos Prisionais da OAB Joinville, ressalta a importância do fortalecimento dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana no contexto do sistema prisional. Em sua visão, a comissão tem um papel essencial na defesa das garantias constitucionais dos detentos, buscando alternativas que garantam um tratamento mais humano dentro das unidades prisionais e promovam a reintegração dos presos à sociedade.
“Temos consciência de que o sistema prisional brasileiro enfrenta sérios desafios, como a superlotação, a falta de recursos adequados e a necessidade de reformas estruturais. No entanto, acreditamos que a advocacia, ao desempenhar seu papel com independência e respeito, pode ser um fator transformador para a defesa dos direitos humanos e para a busca de soluções mais justas”, afirma Scheuer.
Em relação à atual crise enfrentada pelo sistema carcerário, o secretário destaca ainda que “a superlotação não é apenas um problema de infraestrutura, mas um reflexo de um sistema punitivo que falha em seus objetivos de reabilitação e reintegração social, precisamos de uma revisão de políticas públicas que promovam alternativas penais mais eficazes, que valorizem a recuperação do indivíduo e não apenas a punição”.
A Comissão de Direito Criminal e Assuntos Prisionais tem como missão de promover um sistema penal mais justo, humano e eficiente, com o objetivo de garantir a dignidade dos presos e contribuir para a construção de uma sociedade mais equitativa e consciente dos direitos de todos os cidadãos.
Especialistas e autoridades têm apontado a urgência de reformas no sistema prisional brasileiro para reverter esse quadro. Em um evento recente, o secretário de Estado da Casa Civil de Santa Catarina, Marcelo Mendes, apresentou dados preocupantes, como o déficit de 5.147 vagas nas 53 unidades prisionais do estado, e o fato de que 40 dessas unidades estão superlotadas. Mendes afirmou que a situação não é um problema isolado, mas sim sistêmico, que demanda ações conjuntas entre os poderes públicos.
No âmbito nacional, o Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo em número absoluto de detentos, com cerca de 850 mil pessoas encarceradas. No entanto, especialistas argumentam que o problema não está no encarceramento excessivo, mas na superlotação das unidades, que carecem de infraestrutura adequada para garantir a segurança, a dignidade e a ressocialização dos presos. O país possui um déficit alarmante de vagas no sistema penitenciário, o que contribui para a repetição do ciclo de criminalidade, dificultando a reintegração dos presos à sociedade.
O ex-superintendente da região norte de Santa Catarina, Anderson Souza, que possui vasta experiência no sistema penitenciário, aponta a falta de investimento tanto no aspecto social, com a falta de educação de base, quanto na infraestrutura do sistema prisional. “O sistema prisional vai virando um depósito de pessoas, com estruturas precárias, caindo no esquecimento da sociedade enquanto não houver fugas ou rebeliões. Esse sistema profissionaliza o crime e adoece os policiais, sem falar na superlotação, que é um reflexo do fracasso em políticas públicas voltadas para a recuperação dos infratores”, explica.
O especialista destaca que a sociedade deve estar ciente de que, eventualmente, essas pessoas retornarão à comunidade e, por isso, é fundamental que o sistema penitenciário promova também a ressocialização. Para ele, a introdução de medidas educativas no cumprimento das penas, além da punição, é um caminho crucial para a redução da reincidência e a melhora das condições nas unidades prisionais.
Ele também enfatiza a importância do trabalho e da educação como ferramentas para a recuperação dos presos: “Precisamos gerar uma rotina de trabalho e aprendizagem dentro dos presídios. Muitos detentos nunca tiveram um emprego e o baixo grau de escolaridade contribui para que voltem ao crime. É preciso investir em programas de capacitação profissional, além de dar oportunidades de estudo e de trabalho.” Segundo ele, abrir mais vagas de trabalho para os presos e investir em sua profissionalização são medidas essenciais para enfrentar a superlotação e reduzir a reincidência criminal.
A luta por mudanças
O sistema prisional brasileiro enfrenta uma crise de superlotação e condições insalubres que comprometem a dignidade dos detentos e dificultam sua reintegração à sociedade. Segundo o presidente da Comissão do Sistema Prisional do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o procurador de Justiça Eduardo Pugliesi, “a superlotação não é apenas um problema de espaço, mas uma questão de dignidade humana. O sistema tem se mostrado incapaz de reintegrar os presos à sociedade.”
Para enfrentar essa situação, uma das alternativas defendidas é o método Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), que se diferencia por focar na ressocialização dos detentos, em vez de simplesmente puni-los. Pugliesi explica que “a metodologia da Apac visa transformar a vida dos presos, oferecendo uma oportunidade de reabilitação real”.
O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) também tem tomado medidas urgentes para solucionar a crise. Um representante do MPSC afirmou que “a superlotação e as condições insalubres são reflexos de uma política penal falha, que não oferece alternativas eficazes ao encarceramento”. O MPSC tem se mobilizado, por exemplo, com a elaboração de um “Relatório Ministerial com Diagnóstico do Cárcere Catarinense”, que mapeou as condições das unidades prisionais do estado e servirá de base para futuras ações e reformas.
A Defensoria Pública de Santa Catarina tem pressionado pela implementação de mudanças estruturais no sistema. Diversos atores do sistema de Justiça, como advogados, defensores públicos e policiais penais, buscam soluções para as condições precárias das penitenciárias. Entre as alternativas discutidas está a criação de unidades prisionais mais humanizadas, que priorizem a ressocialização.
Especialistas destacam que a reforma do sistema prisional precisa ser abrangente, envolvendo tanto alternativas penais, como a ampliação de penas alternativas, quanto políticas públicas de educação e reintegração. A superlotação e a falta de condições dignas, alertam, só podem ser combatidas por meio de uma transformação sistêmica e de investimentos adequados.
Ações do Ministério Público e Defensoria
O Ministério Público e a Defensoria Pública de Santa Catarina têm se destacado na luta pela garantia dos direitos dos presos. O MPSC, por exemplo, elaborou o Relatório Ministerial com Diagnóstico do Cárcere Catarinense, que avalia as condições das unidades prisionais e propõe medidas para combater a superlotação e melhorar as condições de vida dos detentos. Segundo um representante do MPSC, “a superlotação e as condições insalubres são reflexos de uma política penal falha, que não oferece alternativas eficazes ao encarceramento.”
Durante o Encontro Estadual de Execução Penal, o conselheiro do CNMP, Jaime de Cassio Miranda, abordou a violação dos direitos dos presos em Santa Catarina, destacando que as condições desumanas nas prisões do estado foram reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Miranda reforçou que a solução proposta pelo CNMP é a disseminação do método Apac, que busca garantir a dignidade dos presos por meio da participação da sociedade e com foco na ressocialização, em oposição ao modelo punitivo tradicional.
A desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer também destacou a relevância do trabalho do Grupo de Monitoramento e Fiscalização dos Sistemas Prisional e Socioeducativo. Ela alertou para a falta de preparação da administração pública em defender os direitos dos detentos, além da escassez de investimentos em infraestrutura prisional, o que tem agravado os problemas de superlotação.
Por fim, a promotora de Justiça Bianca Andrighetti Coelho, coordenadora do Centro de Apoio Operacional Criminal e da Segurança Pública (CCR), destacou a importância de integrar dados de diferentes esferas do governo para uma análise mais eficiente do sistema. Segundo Coelho, a falta de uma interlocução eficaz entre a Polícia Militar, o Judiciário e o Ministério Público tem dificultado a implementação de políticas públicas mais eficazes no enfrentamento da crise.
Experiência dentro das prisões
Para entender melhor a realidade dentro das prisões, um ex-presidiário, que preferiu não se identificar, compartilhou sua experiência e reflete as dificuldades vividas por muitos detentos no Brasil. Quando perguntado sobre as maiores dificuldades enfrentadas no sistema prisional, ele falou sobre o estigma das facções. “Você é rotulado pelo bairro de onde vem, e isso gera preconceito. Mesmo que você não tenha nada a ver com facção nenhuma, é alocado em um pavilhão com uma facção, o que complica sua vida”, afirmou. Segundo ele, a falta de programas de reabilitação e de oportunidades de mudança agrava ainda mais a situação, criando um ciclo vicioso de violência e desesperança.
Em relação à infraestrutura das unidades prisionais, o ex-presidiário descreveu condições desumanas. “As celas eram apertadas, sem ventilação, e a superlotação era extrema. Muitas vezes a comida era de péssima qualidade e a higiene era praticamente inexistente, pior que o canil de cachorros”, contou, relatando até surtos de doenças como sarna humana e infestação de ratos. “Era um lugar onde a dignidade humana não existia”, resumiu.
Sobre o que é necessário para melhorar o sistema, ele apontou a urgência de combater a superlotação e de separar os presos de acordo com o tipo de crime cometido. “É essencial que o sistema pense na reintegração social e não apenas no castigo. A superlotação não é apenas ineficaz, ela cria um ambiente propício à violência”, afirmou.
Um dos maiores desafios enfrentados pelo sistema carcerário brasileiro é a alta taxa de reincidência criminal. Dados do Ministério da Justiça indicam que cerca de 70% dos detentos no Brasil retornam ao crime após cumprirem suas penas. Especialistas apontam que a falta de programas eficazes de ressocialização, a superlotação e as péssimas condições das unidades prisionais são fatores determinantes para esse quadro.
Estereótipos no sistema prisional
Em uma reflexão sobre o sistema penitenciário e a atuação das autoridades judiciais, o advogado criminalista, Ricardo Machado chamou atenção para o que ele considera uma “crise de papéis” dentro do sistema de justiça criminal. Para ele, existe uma mitologia em torno das figuras do juiz e do promotor, que muitas vezes se veem como “heróis” dentro de um sistema que deveria ser pautado pela legalidade, mas que muitas vezes é influenciado por pressões externas e estereótipos.
“Há muito essa figura mitológica do juiz ‘herói’ e do promotor ‘herói’ que seguem uma pauta que é deles, muitas vezes quase de natureza doméstica, ligada a pressões políticas. Discursos como ‘não tem outro jeito’ ou ‘só desse jeito que funciona’ geram arbitrariedades e passam ao largo da legalidade”, afirmou Machado. Ele citou o renomado jurista Von Liszt, que escreveu que “o direito penal é o limite intransponível da Política Criminal”, refletindo a necessidade de respeitar os princípios de um Estado Democrático de Direito.
Ricardo também apontou a problemática da triagem dos novos detentos, que são muitas vezes alocados em determinados pavilhões com base em critérios “subjetivos”, como o bairro de origem. “Se você não é da facção X, como é que você está no pavilhão tal? Isso é uma escancarada hipocrisia, porque pode ser só um morador de bairro. Mas é aí que entram os estereótipos criados, que prejudicam ainda mais os presos”, disse. Ele ainda relatou casos de superlotação e condições desumanas em unidades prisionais, como no presídio de Joinville, onde viu situações como surtos de sarna humana.
A triagem inicial das pessoas que entram no sistema é, muitas vezes, baseada em uma análise superficial, o que acaba gerando uma prisão mais violenta e desorganizada.
Ricardo Machado
Pastoral Carcerária
Outro ponto importante dessa discussão vem da Pastoral Carcerária, que tem atuado ao lado dos presos em sua missão de promover a dignidade humana e a justiça social. O padre Marcos Alves, coordenador estadual da Pastoral, explicou que a sobrecarga do sistema prisional no Brasil não é uma questão isolada, mas reflete um problema maior de marginalização de populações, especialmente negras, jovens e de áreas periféricas.
“A política de encarceramento em massa não diminui a violência. Pelo contrário, ela agrava ainda mais a situação”, afirma. Ele ressalta que a Pastoral tem lutado para chamar a atenção da sociedade para a necessidade de uma redução da população carcerária e da busca por alternativas mais humanas, como a Agenda Nacional Pelo Desencarceramento, lançada em 2013. Esse documento propõe medidas como a suspensão da construção de novas unidades prisionais, a redução de penas e a descriminalização de certos crimes, especialmente aqueles relacionados à política de drogas.
A Pastoral Carcerária também defende a ampliação das garantias da execução penal e a proibição da privatização das prisões. “O sistema penitenciário não pode ser tratado como um negócio. O encarceramento não pode ser uma solução para todos os problemas da sociedade”, completou o padre Marcos, defendendo um sistema que seja mais voltado para a reintegração dos presos e que respeite seus direitos humanos.
Necessidade de reformas urgentes
O que fica claro a partir das contribuições dessas diferentes fontes é que o sistema prisional brasileiro precisa de uma reforma profunda e urgente. A superlotação, as condições precárias de higiene, a violência e a falta de oportunidades para a reintegração dos detentos são problemas estruturais que exigem soluções imediatas. Além disso, é necessário que a sociedade como um todo entenda que o encarceramento em massa, especialmente das populações mais vulneráveis, não resolve os problemas de segurança pública e só perpetua a violência.
Enquanto o sistema carcerário permanece sobrecarregado, as propostas de reforma — que incluem a implementação de modelos alternativos como o Apac, a redução da população carcerária, a ampliação das oportunidades de reabilitação e a defesa dos direitos humanos dentro das prisões — são vistas como fundamentais para garantir que o sistema não seja apenas punitivo, mas também restaurador e capaz de proporcionar uma nova chance de reintegração para aqueles que cumpriram suas penas.
A reforma do sistema prisional não é apenas uma questão de infraestrutura, mas de garantir a dignidade dos presos e a segurança da sociedade como um todo. A combinação de penas alternativas, mais vagas e melhores condições de infraestrutura é essencial para garantir que o sistema penal cumpra sua função de retribuição e reintegração do infrator à sociedade, sem violar os direitos dos cidadãos.