Artigo: A greve dos caminhoneiros
No Brasil, o direito de greve aos trabalhadores está garantido no Art. 9º da Constituição Federal de 1988. Nas primeiras décadas do século XX, a greve era considerada crime, um caso de polícia” e motivo para extradição de imigrantes. Somente a partir da Constituição Federal de 1946 que a greve começou a ser regulamentada, passando por oscilações, de acordo com a política de cada governo em exercício.
Greves de relevância social e política ocorridas durante o século XX foram registradas e analisadas por historiadores, especialmente no que se refere à classe operária, uma vez que a paralisação da produção de bens na sociedade capitalista significa perda de lucratividade aos donos do capital.
Historicamente, desde a formação dos sindicatos, entendia-se que estes, como representantes da classe trabalhadora, eram responsáveis pelas negociações entre empregados e patrões, de acordo com as categorias. Porém, na década de 1980, “novos personagens entraram em cena” como bem escreveu Eder Sader (1988), ao abordar a emergência de um sujeito coletivo para além do contexto sindical nas reivindicações de direitos. As greves por categorias no ABC paulista ganharam a empatia de outros setores da sociedade (estudantes, professores, pastorais, CEBs, artistas, advogados) que se solidarizaram com os trabalhadores. Esse compartilhamento de se solidarizar com a greve, fazendo greve, espalhou-se pelo país. O regime militar reprimiu ou cooptou como pode o movimento operário e o que salvou da repressão foram os movimentos populares num contexto de um novo sindicalismo, independente das amarras do Estado e dos partidos políticos.
Apesar da Constituição de 1988 ser considerada a mais cidadã pelas suas características de universalidade dos direitos, coincidiu com o interesse de governantes à aderência da política neoliberal com sua doutrina de livre mercado, o que encantou uma parcela da sociedade ávida pelo consumo de bens. Assim, as greves foram, aos poucos, perdendo o caráter solidário e caíram no ostracismo, ou passaram a ser sinônimo de vandalismo, baderna, malandragem, especialmente aquelas desencadeadas por profissionais da áreas de saúde e educação. Mas não foi o que ocorreu com a atual greve dos caminhoneiros. Por que essa repercussão de solidariedade declarada aos grevistas?
Todos sabem, ou pelos menos deveriam saber que no Brasil, desde o Plano de Desenvolvimentismo aplicado por Juscelino Kubitschek, a produção a ser escoada e distribuída pelo país chega aos aeroportos, aos portos, aos mercados, aos depósitos e em qualquer lugar de destino, sobre rodas que sustentam veículos movidos a combustíveis fósseis. Mas poucas pessoas imaginavam que a cadeia produtiva e distributiva de mercadorias pudesse ter efeito dominó caso os caminhoneiros resolvessem paralisar as atividades de transportes terrestres. Nas últimas décadas ocorreram greves dos caminhoneiros, mas sem grande repercussão na mídia e no abastecimento de mercadorias.
O que difere a greve de 2018 das anteriores? Esta paralisação é um misto de locaute (empresários de transportes de cargas) e de greve (caminhoneiros autônomos) e outros tantos interesses que foram se somando, resultado de um processo de erros sucessivos ocorridos por outras manifestações que culminaram com a legitimidade de um poder, que, no final, não agradou nem mesmo aqueles que acreditavam na solução simplória da destituição da presidente eleita quando perceberam que a economia não havia melhorado, ao contrário, estava corroendo o bolso do consumidor.
Neste sentido, o momento político de insatisfação popular pode explicar, em parte, esta explosão de apoio à paralisação da greve dos caminhoneiros. No entanto, não se pode considerar esse apoio como um uma demonstração de fidelidade ao movimento, pois no momento que começam a faltar produtos nos mercados e combustíveis para abastecer o carro, os apoiadores se retiram. Além do mais, o campo deste apoio está nebuloso. Nas mobilizações em pontos de encontros em defesa à causa dos caminhoneiros, percebe-se situações inusitadas, como alguém que traz no peito a estampa de Bolsonaro e nas mãos segura um cartaz pedindo a intervenção militar, mas alega estar no local para defender o futuro da sua filhinha, num país livre de comunistas. Interessante observar que manifestantes defendem o livre mercado, mas querem que o Estado regule os preços de certas mercadorias. Desejam a saída de Temer, mas pedem a intervenção militar, talvez, sem entender o que isso significa.
Não se pode negar que o “sucesso” da duração desta greve está também ligado à sincronia dos próprios caminhoneiros que, mesmo espalhados pelo Brasil inteiro, estão em contato permanente por meio do WhatsApp, com o propósito de serem atendidos em suas reivindicações diante dos aumentos constantes do preço dos combustíveis e do pedágio.
Por outro lado, o governo Temer recrudesceu desde o primeiro momento, com aparições em cadeia nacional, errando o passo para uma negociação razoável, se é que isso seria possível diante do quadro econômico depois de ter negociado com as empresas multinacionais a privatização de refinarias de petróleo.
O limite da greve, neste caso, se encontra no Art. 5º, XV da Constituição ao auferir que não é permitido aos grevistas impedirem o direito de ir e vir dos cidadãos. Como se trata de uma categoria de autônomos, em grande parte, fica difícil proibir a greve por ilegalidade, quando estes concordam em deixar passar os veículos de passageiros e que transportam produtos essenciais à coletividade.
Enquanto parte da sociedade começa a reclamar da falta de acesso aos serviços e produtos que estava acostumada, para outra parte não mudou muita coisa porque sempre foi privada de direitos. O que se pode tirar dessa paralisação? Que os recursos naturais são finitos e que o estilo de vida que se leva atualmente nas grandes cidades é insustentável. Precisamos dar sentido à vida e exercer os direitos constitucionais para além do acesso à gasolina.
Por: Valdete Daufemback, professora da Faculdade Ielusc
Foto: Alex Sander Magdyel
Conteúdo original do Primeira Pauta Impresso, Edição 139