Os cem anos de Clarice Lispector
De romances a contos infantis, a contribuição da escritora para a literatura brasileira é reconhecida até hoje
Em 10 de dezembro deste ano a autora Clarice Lispector completaria cem anos. De família judaica, Clarice foi naturalizada brasileira. Com o nome de Haia Lispector, a caçula de três irmãs na verdade nasceu na Ucrânia em uma vila chamada Tchetchelnik, na época território do Império Russo.
Mesmo assim, sua contribuição para a Cultura Brasileira permitiu um novo olhar sobre a literatura. Benjamin Moser, autor de Clarice, uma biografia, classifica-a como a melhor escritora judia desde Franz Kafka. Ela foi a porta de entrada para abordagens mais voltada ao psicológico, fugindo da escrita voltada ao regionalismo comum nas décadas de 1930 e 1940.
Clarice foi uma escritora que fez parte da terceira fase do modernismo, movimento artístico do início do século 20 que moldou a escrita brasileira. Praticamente não há gênero literário que Clarice não se aventurou. Com uma escrita peculiar e estilo próprio, ela conseguia transformar pensamentos e cenas do cotidiano em jornadas repletas de reflexões e emoções. Uma das características de seu texto era o fluxo de consciência, ou seja: devaneios durante situações cotidianas.
Para Caio Bona Moreira, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), “sem a Clarice nossa literatura seria mais pobre”. O encantamento produzido pela leitura do texto de Clarice está mais em sua força do que em sua forma. Ela convida o leitor para uma relação de cumplicidade com a autora durante seus textos. “Impossível explicar Clarice. É mais possível ler com ela, escrever com ela, conversar com ela”, afirma.
“Podemos até tentar apontar características que tornaram seus textos memoráveis. Mas nenhuma característica daria conta de explicar porque amamos tanto a Clarice. É um mistério” Caio Bona Moreira doutor em Teoria Literária pela UFSC
Caio diz que demorou a ler Clarice Lispector. Só foi ler os textos durante a graduação em Letras com o livro A Hora da Estrela. “Me impressionou bastante. Nunca havia lido nada semelhante”, conta. Clarice é uma autora muito amada, mas Caio não acha que existe um porquê específico. “Podemos até tentar apontar características que tornaram seus textos memoráveis. Mas nenhuma característica daria conta de explicar porque amamos tanto a Clarice. É um mistério”, conclui.
Em 1943, Clarice publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. No ano seguinte, o livro recebeu o prêmio de Melhor Romance de Estreia pela Fundação Graça Aranha e foi elogiado pela crítica especializada.
O escritor e crítico literário Sérgio Milliet elogiou o livro na época, afirmando que era a mais séria tentativa de romance com enfoque nos conflitos internos da protagonista. “Pela primeira vez, um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura”, escreveu em ensaio de 1944.
Outro crítico literário a escrever sobre o primeiro romance de Clarice foi Antonio Candido. Escreveu, no extinto periódico Folha da Manhã, que “a intensidade com que [Clarice] sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura”.
E Candido estava certo. A publicação do livro seria o primeiro sucesso de uma série de romances que Clarice publicou nos anos subsequentes. Dentre os mais aclamados estão: A Paixão Segundo G.H. (1964), Água Viva (1973) e A Hora da Estrela (1977) – que recebeu Prêmio Jabuti de Literatura em 1978 .
Mas o prestígio à Clarice Lispector, hoje, não esconde o fato de que a autora passou por maus bocados antes mesmo de aprender a escrever. Seu nascimento se deu em meio a uma tentativa de emigração, eles queriam deixar o país para fugir da violência contra os judeus e da guerra civil; ocasionada devido aos conflitos entre a monarquia russa e o partido bolchevique.
Em março de 1922, a família Lispector desembarcou do navio a vapor Cuyabá em Maceió. No Brasil. os nomes russos da família foram adaptados à língua portuguesa. O pai, Pinkouss, virou Pedro, e a mãe, Mania, virou Marieta. Leia, a primogênita, virou Elisa, Tania, a irmã do meio, não adaptou o nome e Haia virou Clarice. A família se mudou para Recife e, após a morte da mãe, para o Rio de Janeiro.
Além dos romances, Clarice também publicou contos, crônicas e histórias infantis. Além de transparecer sua habilidade de escrita nas cartas que enviava às irmãs e colegas escritores, como Rubem Braga e Nélida Piñon. Cartas que postumamente seriam reunidas e publicadas também.
Clarice Lispector está ligada às histórias que escrevia. Ela já se inseriu inclusive como personagem do livro infantil A Mulher que Matou os Peixes. A narrativa do livro é um monólogo entre a própria autora com o leitor. O livro começa com uma confissão, “Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu”. Este foi o segundo livro de Clarice Lispector voltado à literatura infantil.
O primeiro, intitulado O mistério do Coelho Pensante, foi escrito devido a um pedido de seu filho, Paulo Gurgel Valente. O livro foi redigido nos anos 1950, sendo inicialmente uma obra de cunho pessoal e publicada só em 1967.
Rafael Miguel Alonso Júnior doutor em literatura pela UFSC começou a ler Clarice por volta dos quatorze anos, fruto de uma leitura escolar obrigatória. “Foi uma leitura que me gerou um estranhamento. No entanto, me gerou um estranhamento de muita curiosidade”, comenta.
A obra de Clarice tem sido amplamente estudada no meio acadêmico. A psicanalista Djulia Justen, doutora em Literatura pela UFSC, estudou textos da autora para a dissertação de seu mestrado e tese de seu doutorado.
Em sua dissertação intitulada: Das Revelações aos clichês: As Imagens Alegóricas da Sexualidade em Clarice Lispector, Djulia faz um parâmetro entre textos de Clarice e analisa personagens idosas que descobrem um desejo sexual ainda latente.
Já em seu doutorado: SVEGLIAMAQUIA, Instantes de despertar em Clarice Lispector, Djulia se apropria de algumas ideias do mestrado e analisa a questão do tempo sobre personagens idosas. O despertar seria um “acorda pro agora”. Como se ela deixasse de ser idosa no momento em que adquirisse essa consciência. No sentido de despertar-se.
Djulia comentou sobre os títulos atrelados à figura de Clarice. Não há dúvidas de que o nome Clarice Lispector é amplamente conhecido, rotulada por vezes como “A Grande Escritora Brasileira” ou “A Escritora Metafísica”. Mas Djulia provoca: “As pessoas sabem o nome mas não conhecem tanto o texto”.
Djulia também critica as comparações que a autora recebia. Em Perto do Coração Selvagem comparam-na à escritora britânica Virginia Woolf. Em 1974, publicou o conto A Via Crucis do Corpo e foi comentado que Clarice estaria imitando o escritor Dalton Trevisan. A literatura é feita de leituras e “um texto sempre está remetendo à outro. O escritor é um leitor voraz, é o leitor que lê de tudo. Fica muito taxativo dizer que um escritor está imitando o outro”, afirma.
Clarice lia muito e de tudo. Em uma entrevista concedida à TV Cultura, em 1977, afirmou: “eu misturei tudo. Eu lia romance pra mocinha misturado com Dostoievski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores. Fui ler aos 13 anos Hermann Hesse”. Desde muito jovem demonstrou um fascínio pela literatura. Começou a escrever pequenas histórias a partir do momento em que aprendeu a ler.
Mesmo antes de publicar o primeiro livro, já publicava seus contos em revistas e jornais. “Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo, eu chegava lá na revista e dizia: eu tenho um conto, você não quer publicar?”, afirmou na mesma entrevista. Clarice deu essa entrevista à TV Cultura em fevereiro de 1977. No fim do ano, no dia 9 de dezembro, Clarice morreu de um câncer de ovário. Um dia antes de completar 57 anos.
A pintora que poucos conhecem
Quadro abstrato Sem Título de Clarice Lispector pintado à óleo sobre madeira. Medindo 40cm de largura e 30cm de altura. Na pintura se destaca o fundo vermelho com formas pretas e detalhes em amarelo. O quadro foi pintado em 7 de maio de 1976. Acervo de Nélida Piñon.
Todos já ouviram falar da autora Clarice Lispector, mas o que nem todos sabem é que além da literatura, outro campo que também interessava Clarice era a pintura. Ao longo de sua vida pintou 22 quadros, a maioria em madeira.
Além de tinta, Clarice também usava canetas, esmalte de unha e vela derretida para trabalhar nas obras. Suas pinturas eram sumariamente abstratas, mas também envolviam figuras relacionadas à estética do feio.
A autora já chegou a afirmar que através do texto não alcançou a paz que queria, mas na pintura sim. O ato de mexer com as cores sem se preocupar com técnica alguma “é relaxante e ao mesmo tempo excitante”, como disse em uma conferência na Universidade do Texas, em 1963.
Patrícia Villar, mestra em Antropologia Social e professora de Estética e Arte Contemporânea, explica que um quadro abstrato é formado por elementos irreconhecíveis. E quando há uma figura reconhecível, mas que foge dos parâmetros de normal e de belo, se enquandra na chamada estética do feio. Um rosto com um olho costurado ou uma orelha faltando por exemplo.
Patrícia explica que o feio na arte, por vezes causa uma maior reação de quem vê a obra. Por isso é comum que esse tipo de expressão receba mais atenção. Em meio a tantas obras belas, o feio acaba sendo um corpo estranho e causa uma reflexão maior. “Isso é experiência estética, a experiência sensível que a gente tem a partir da aparência das coisas”, diz.
“O abstracionismo é atemporal, mas a estética do feio não. O que é feio hoje, amanhã pode ser lindo”, explica. Patrícia conta que há uma desvalorização que o dito “feio” e “grotesco” têm no mundo da arte. E por isso muitos artistas usam dessa estética para chamar atenção.
Para Patrícia, a mesclagem nas pinturas de Clarice com o abstracionismo e, por vezes, a estética do feio, foram inseridos pela autora espontaneamente. “Apesar dela dizer que pintava muito mal, ela era uma artista com muita sensibilidade,” conclui.
Por mais que Clarice não gostasse dos próprios quadros, há muitos que gostam. Um quadro de Clarice Lispector sem nome foi arrematado em um leilão promovido pela marchand Soraia Cals, no Rio de Janeiro, em julho de 2019. O lance inicial era de 8 mil reais. A escritora e amiga de Clarice Nélida Piñon arrematou-o por 225 mil reais.
Reportagem: Roger Cardoso dos Santos
Conteúdo produzido para o Primeira Pauta Digital | Disciplinas de Jornal Laboratório I e Jornalismo Digital, 4ª fase/2020