Seria esse o fim do cinema?
Ano de 2020 apresentou uma alta de 145% no número de assinaturas de serviços de streaming
Por Heloisa Krzeminski
Desde o seu surgimento no século XIX, o cinema passou por diversos desafios que colocaram sua existência em ameaça, mas sempre encontrou uma forma de se reerguer. Na crise de 1929, os filmes se tornaram uma forma de escapismo em meio a Depressão. O movimento foi desestabilizado com o surgimento das TVs nos anos 50, mas se adaptou para conquistar seu espaço novamente. Mas qual é a relação disso com as novas tecnologias de distribuição de filmes, os streamings?
Plataformas como Netflix, Globoplay, Disney+ e Amazon Prime estão presentes na vida de 73,5% dos brasileiros, conforme mostra uma pesquisa realizada pela divisão de Mídia da Nielsen Brasil em parceria com a Toluna, em 2020. Com a pandemia, esses serviços têm se tornado um fenômeno crescente com cada vez mais qualidade e variedade de conteúdo, sendo capazes até mesmo de competir no Oscar.
Cineastas como Steven Spielberg e Christopher Nolan já deram entrevistas afirmando acreditar que esses novos serviços ameaçam a atividade das telonas, mas existem respostas controversas neste meio. Para o roteirista e diretor cinematográfico Anderson Dresch, os streamings não vão matar a sétima arte já que a experiência do cinema não tem como se repetir em casa da mesma forma. O cineasta compara esta situação com os restaurantes. “É a mesma coisa que falar que não vai mais ter restaurante, todo mundo vai comer em casa”, disse.
Para Vincent Sesering, jornalista e cinéfilo, sem qualquer crise ou presença dos streamings, a maneira como as distribuidoras e exibidoras operam sempre tende a inclinar para o lado mais lucrativo, dando destaque aos blockbusters e filmes infantis. Portanto, os streamings podem fazer com que o consumidor opte por não assistir a todos os filmes que estão em cartaz e aguardar para assistir em casa por questão de variedade. “Não mata o cinema. Embora vá tornando isso uma atividade cada vez mais de nicho”, opinou.
Na visão de Brian Hagemann, mestre em comunicação e coordenador do curso de Cinema e Audiovisual na Univille, o cinema é imortal, afinal já sobreviveu a muitas crises, entre elas a televisão, as locadoras de VHS e DVD e a pirataria. “Mas claro, dentro de cada desafio imposto, o cinema sobrevive se adaptando às novas tecnologias e mercados”, completou. Para ele, o que está ameaçado é a variedade do conteúdo disponível nas salas de cinema.
O surgimento de novas plataformas se tornou uma tendência mundial e possibilitou uma variedade imensurável de conteúdos exclusivos disponível para todos que podem pagar por ela. Apesar disso, todas essas novas possibilidades também possuem seus contras.
Para Brian Hagemann, o grande problema é que com muitos serviços de streaming é difícil para o consumidor acompanhar tudo, já que fica caro mantê-los todos. “O ideal é que os serviços de assinatura unificassem streamings e barateassem para o consumidor”, considerou.
Vincent Sesering comparou os streamings com as locadoras para ilustrar a desvantagem da grande variedade de plataformas. Segundo ele, nas locadoras os filmes se amontoavam ao longo dos anos e existiam diversas opções de filmes de todos os países e de todas as épocas, diferente do que acontece nos streamings, que se limitam aos lançamentos e filmes de no máximo 30 anos. “Muita gente hoje vê filmes da década de 80 e 90 e enxerga isso como clássicos antiquíssimos. Ignorando aí 100 anos de filmes que vieram antes disso e todo um planeta além dos EUA”, criticou.
Pirataria
Um dos episódios de pirataria mais conhecidos no Brasil foi o vazamento de Tropa de Elite, em 2007. De acordo com a empresa Nagra/Kudelski Group, em 2020 o Brasil foi o país com o maior consumo de pirataria online no mundo. A indústria do cinema luta contra essa atividade desde o avanço das tecnologias e do surgimento da Internet. “A pirataria é inevitável, visto que nem todos podem pagar por todo o conteúdo que deseja”, disse Brian. De acordo com ele, a pirataria digital é mais atrativa por ter uma qualidade semelhante ao produto original.
Apesar de seus malefícios aos trabalhos independentes, Vincent se considera um entusiasta da pirataria, pois há muitos anos é o lugar ideal para consumo do cinema clássico e alternativo. “Não existe neste momento, por exemplo, uma maneira de se assistir As Vinhas da Ira, do John Ford, de 1940, que não seja ilegalmente baixando o filme ou indo atrás de um DVD antigo”, explicou. Para o cinéfilo, a pirataria contribui mundialmente com a distribuição e preservação de títulos que não estão nos streamings e que são difíceis de encontrar em mídia física, como o filme brasileiro A Falecida. “A pirataria sempre vai existir. E eu torço para continuar. Porque ela faz muitas vezes um trabalho de preservação que empresas e Estado não conseguem fazer.”
Clássicos do cinema
Filmes como 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), O Poderoso Chefão (1972) e O Iluminado (1980) marcaram sua época de lançamento de tal forma que possuem relevância até hoje. São muitos os clássicos responsáveis por importantes tendências e marcos do cinema que retratam comportamentos e tempos diversos. Para Vincent, a definição de clássico está intrinsecamente relacionada com o tempo. “É uma obra que perdura, que marca uma época ou que, vista em perspectiva, reflete esse tempo”, disse. Nesse sentido, os impactos podem ser definidos pela questão de revolucionar a linguagem do cinema ou pelo impacto cultural. Por pior que sejam em outros aspectos. O Nascimento de uma Nação, de David. W. Griffith é um exemplo. “Um filme escancaradamente racista e condenável de muitas maneiras e que glorifica a Ku Klux Klan”, contou o jornalista. Apesar disso, é considerado um clássico por ter utilizado pela primeira vez no cinema recursos como montagem paralela (mostrar dois eventos na tela acontecendo simultaneamente) e contar uma história de forma complexa do ponto de vista da estética.
Para Brian, o requisito que um filme precisa ter para ser considerado um clássico é ter o sucesso comercial aliado a aclamação da crítica, não ter necessariamente grande bilheteria, mas ser reconhecido e ganhar prêmios importantes da indústria. Por esse motivo é possível arriscar títulos recentes que sejam considerados clássicos no futuro, como Mad Max: A Estrada da Fúria (2015), Parasita (2019), Corra! (2017), entre outros.
Se tratando de streaming, Vincent e Brian acreditam que podem existir produções deste meio que se tornem clássicos no futuro. Para Brian, assistir na TV pode não ter o mesmo impacto que no cinema, “mas as produções cinematográficas originais dos streamings ainda são um fenômeno recente, e só o tempo vai dizer quais entrarão no panteão dos clássicos”, concluiu.
Ambos citaram o filme O Irlandês, produção da Netflix, como um exemplo de potencial clássico dos streamings. “Ser um clássico ou não, ou uma obra prima, pra mim independe da plataforma de lançamento”, defendeu Vincent.
A visão de Anderson Dresch é divergente. O cineasta acredita que o streaming não tem o mesmo glamour do cinema e que consequentemente é complicado surgirem clássicos dele. “Aquilo que está no streaming é muito passageiro, é um filme que você assiste e passa para o próximo”, explicou.Independentemente das opiniões que se formaram desde o surgimento do primeiro serviço de streaming, é incontestável que o cinema se tornou uma das artes mais relevantes que existem. Todo o imaginário construído desde o século XIX sobre o ato de ir assistir aos lançamentos resultou nas 176 milhões de vezes que os brasileiros foram ao cinema em 2019 conforme dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual. Portanto, a resposta para a tão polêmica pergunta sobre a morte da sétima arte é não, ela não irá morrer, mas isso não significa que continuará a mesma para sempre. O que resta aos fãs e a indústria é se adaptar às novas tendências cinematográficas, assim como tem feito há mais de 100 anos.