Leia Mulheres Joinville: uma das poucas formas de discutir literatura na Cidade da Dança
Prestes a completar cinco anos, o clube do livro joinvilense tem como objetivo disseminar a literatura escrita por mulheres e leva pluralidade cultural para a cidade
Por: Dielin da Silva
“Pois o silêncio não tem fisionomia, mas as palavras muitas faces.” A frase é de Machado de Assis, escritor carioca apontado 521 vezes na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2019 como o autor mais conhecido e 297 vezes como o preferido dos brasileiros. Realizada entre outubro de 2019 e janeiro de 2020 pelo Instituto Pró-Livro (IPL), Itaú Cultural e IBOPE Inteligência, a pesquisa considera leitor toda pessoa que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos 3 meses que antecederam a entrevista.
A pesquisa, que entrevistou 8.076 pessoas de 208 municípios brasileiros, teve como público-alvo a população brasileira residente com cinco anos ou mais, alfabetizada ou não. Dos 193 milhões de habitantes, apenas 52 milhões são considerados leitores.
Apesar de o estudo ter sido realizado em todas as unidades federativas, o número exato de entrevistados por estado não foi divulgado. Na região Sul se encontram 14% dos participantes da pesquisa – que apontou que os três estados têm 16,1 milhões de leitores – o que equivale a 1.181 respondentes.
Joinville, além de ser a maior cidade de Santa Catarina, também é onde acontece uma das maiores feiras do livro no estado, evento que já trouxe para a cidade nomes como Thalita Rebouças, Lázaro Ramos, Walcyr Carrasco, Miriam Leitão, Conceição Evaristo e Juarez Machado (que dá nome a um dos mais conhecidos espaços culturais de Joinville).
Porém, leitores joinvilenses apontam que o fomento cultural da área em outros períodos do ano é insuficiente. Este foi um dos motivos que levaram a jornalista Marcela Güther a criar o Leia Mulheres Joinville, grupo que discute mensalmente obras escritas por mulheres, com o objetivo dar visibilidade a escritoras que nem sempre receberam o reconhecimento que mereciam.
“Eu vejo que na cidade tem muitas iniciativas pro grupo infantojuvenil, até a Feira do Livro reflete isso na sua formatação e proposta de programação, mas o público adulto leitor é pouco contemplado e acho que o clube do livro veio para sanar isso”, explica Marcela.
O início do clube de leitura na cidade
O clube joinvilense começou em 2017, quando Marcela descobriu o movimento Leia Mulheres nas redes sociais. Inicialmente, pensou que fosse apenas uma hashtag, mas logo soube que era uma iniciativa para dar visibilidade a escritoras mulheres. Ela, então, buscou por um grupo de leitura na cidade, mas na época existiam somente dois em Santa Catarina: em Blumenau e em Florianópolis. “Então eu decidi criar”, afirma a jornalista, tamanho era o seu desejo de compartilhar experiências literárias.
Para criar um grupo do movimento em sua cidade é preciso entrar em contato diretamente com a organização nacional do Leia Mulheres. “Não se pode criar do nada e dizer que é Leia Mulheres, porque é uma marca registrada”, explica Marcela.
Após entrar em contato com a organização, a jornalista passou por um processo de entrevista para tornar-se mediadora. Além de mediar os encontros, ela é responsável pela escolha das leituras que serão feitas ao longo do ano. Já são mais de 40 livros lidos pelo grupo de Joinville.
Como estão as reuniões do grupo em meio a pandemia?
Devido à pandemia da Covid-19, os encontros do Leia Mulheres passaram a ser realizados através de videochamadas. “Por ser online, a gente tem a oportunidade de receber participantes de fora da cidade”, menciona a jornalista e mediadora, Marcela Güther.
O formato também possibilita a realização de encontros conjuntos com outros grupos, como aconteceu com o Clube do Livro de Jaraguá do Sul e o Leia Mulheres Divinópolis (Minas Gerais). Esse último bateu o recorde de tempo de discussão sobre o livro do mês: foram quatro horas de troca de experiências. Já em outro encontro, a tradutora do livro participou da conversa, fato que dificilmente aconteceria não fosse o formato online.
A mediadora comenta que alguns clubes do Leia Mulheres optaram por não manter os encontros desta forma, porém avalia que para ela e outros participantes de Joinville têm sido importante dar continuidade aos encontros: “É um momento de escape de tudo isso, em que você está conversando, rindo e construindo com pessoas que você gosta. É um momento tanto para conversar sobre literatura quanto para ver amigos, então está sendo bom a gente continuar online, porque reforçou esses laços, não cortou.”
Uma das pessoas que começaram a participar do grupo durante a pandemia foi a psicóloga Angela Maria Hoepfner, de 67 anos. Seu primeiro encontro foi em maio de 2020 e desde então tornou-se participante assídua. “Ter com quem dialogar e fazer trocas sobre um livro é algo maravilhoso. Porque cada leitor lê de um jeito e com sua própria riqueza. Nem sempre os interesses são os mesmos e é bom que não seja, pois torna muito mais interessante”, argumenta.
O gosto em comum por livros e os interesses diversificados também são pontos destacados pela professora Carla Diacui, de 41 anos. “É estimulante, embora pense que nem todos que participam têm os mesmos interesses literários. Acredito que o maior ganho está justamente nessa diversidade. O ponto em comum é que os participantes estão interessados em obter e compartilhar novas vivências, instrução e cultura”, ressalta. Integrante do Leia Mulheres desde o segundo encontro, ela soube da existência do clube na cidade através de um boletim na rádio, para o encontro sobre o livro “A arte de pedir”, da escritora Amanda Palmer, em agosto de 2017.
Já para Marília Garcia Boldorinia, 32 anos, a melhor parte do clube é conhecer pessoas com gostos parecidos com os seus. “Quando encontramos pessoas com quem compartilhar as leituras, discutir sobre os temas e aprender a cada encontro, a vontade de ler fica cada vez mais latente. Agora, na pandemia, estamos todos emocionalmente cansados, mas o grupo incentiva você a não abandonar a leitura, afinal você tem um compromisso: participar do debate do livro”, aponta a preparadora textual, que participa dos encontros há cerca de três anos.
Apesar de Angela, Carla e Marília participarem com frequência dos encontros do Leia Mulheres Joinville, a assiduidade não é pré-requisito para quem deseja participar, basta ter lido a obra que será discutida no encontro.
Para Marcela, o número de pessoas nunca foi uma preocupação. “Claro que a gente sempre quer que tenha bastante gente, mas ao longo dos encontros eu fui percebendo que quantidade não é qualidade de discussão”, analisa a mediadora.
Participar ativamente das discussões também não é obrigatório. Marcela destaca que, quando pessoas novas participam dos encontros, mas não se sentem confortáveis em falar durante a discussão, e ela, como mediadora, respeita o desejo dos participantes. Nas conversas online, os leitores têm a opção de participar pelo chat, sem necessariamente ligar o microfone.
Segundo Marcela, a média de participantes por encontro atualmente está entre 15 e 19 pessoas. A jornalista exemplifica os perfis entre os integrantes do grupo: “Tem gente que só vem nos encontros dos livros que a pessoa realmente quer ler e tem gente que lê todos os livros, que abraça a proposta de ter experiências diferentes do seu lugar-comum.”
Como funcionam os encontros?
O que antes era uma roda de conversas e discussões tornou-se uma tarde de sábado em frente à tela do computador ou celular, ainda assim, cheia de trocas de experiências sobre o livro do mês.
“O objetivo é aproximar, então dependendo do livro a gente tem uma conversa que gira em torno das questões estéticas da obra ou das questões de vivência de cada uma. Como há muitas personagens mulheres nos livros, as narrativas conversam com a história de cada pessoa”, exemplifica.
Incentiva e traz conhecimento
Participar do grupo fez com que Angela, Marília, Carla e tantas outras integrantes tivessem um incentivo a mais para ler. Angela, por exemplo, anota todos os comentários e indicações de livros feitos nos encontros, depois, vai em busca das obras para ler nas brechas de tempo. Além do Leia Mulheres Joinville, ela participa de outros cinco clubes de leitura e criou o “Vontade de (re)ler os clássicos” que teve início em maio.
Na vida de Carla, o reflexo desse incentivo se estende também para a família. “Além dos livros indicados no Leia Mulheres Joinville, consegui inserir na minha rotina a leitura de outras obras. Inclusive, busco incentivar o hábito da leitura nos meus filhos. Meu marido e eu nos revezamos para ler com eles a fim de colocá-los para dormir”. Ela acrescenta, ainda, que acaba aprendendo muito com a literatura infantil e juvenil apreciada nestes momentos com os filhos.
Os encontros do grupo joinvilense também são cheios de aprendizado. A discussão mais marcante para Marília foi sobre o livro “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex. A obra conta a história dos maus-tratos ocorridos no Hospital Colônia, em Barbacena, Minas Gerais, algo até então desconhecido por Marília.
“A leitura e depois o debate sobre o texto me fizeram conhecer uma realidade tão distante e ao mesmo tempo tão próxima, acerca de um assunto de suma importância, mas tão omitido. Essas experiências nos fazem sair da nossa zona de conforto”, conclui a preparadora textual.
Já para Marcela, um encontro muito marcante foi quando leram “Mulheres, Raça e Classe”, da Angela Davis. “Até então, era meio raro aparecerem homens e quando vinham casais, o homem atuava mais como acompanhante do que participante. Era um casal de pessoas mais velhas, eles leram em conjunto o livro e em voz alta, pro outro também ‘ler’”, relembra a mediadora.
Ela explica que ao final, a autora faz uma reflexão sobre o peso do trabalho doméstico, como isso sempre foi imposto para as mulheres negras e como até hoje há um grande número de mulheres realizando as tarefas de casa. “Pelas palavras da Angela Davis, o marido se deu conta de muitas coisas sobre a relação familiar e divisão de tarefas em casa. Foi um depoimento significativo e muito bonito”, ressalta a jornalista.
Descentralização (nos livros e nos encontros)
O Leia Mulheres tem em sua proposta tirar a atenção centrada nos autores homens e dar visibilidade às escritoras mulheres, mas a mediadora do clube joinvilense busca ir além neste processo de descentralização da leitura.
Para isso, quando prepara o cronograma de leituras do ano seguinte, busca autoras de países de fora do eixo Estados Unidos – Europa, dando visibilidade a escritoras da Ásia, África e América do Sul, além de incluir mais mulheres negras e indígenas, por exemplo.
A diversidade também está nos gêneros literários, tanto livros de contos, ficções, biografia, livros teóricos, tudo pensando na pluralidade das obras a serem lidas.
Mas a descentralização não parou nos livros. Por algum tempo o grupo foi itinerante, cada encontro era realizado em um lugar diferente de Joinville. Serviram como local um museu, associação de moradores (na Amorabi) e em outros espaços culturais da cidade que muitos integrantes do grupo não conheciam e graças ao Leia Mulheres passaram a frequentar.
Como participar?
Para participar dos encontros, basta fazer a inscrição em um link disponível no perfil do Instagram do Leia Mulheres (@leiamulheresjoinville). Um dia antes do encontro o participante receberá o link para a chamada de vídeo da reunião.