Libido on demand: a nova forma de consumir pornografia
Na internet, a plataforma OnlyFans reúne mais de 150 milhões de usuários ao redor do mundo
por Pedro Novais, Maria Fernanda e Kevin Eduardo
De um lado, alguém abre um notebook. Olhos sedentos encaram a tela. Do outro lado, uma pessoa sorri e morde os lábios, com expressão que vai da mais pura simpatia ao tesão latente. Há um vínculo de exclusividade, que deixa tudo mais excitante. Naquela tela, nenhum pudor. A nudez é apenas um detalhe em meio à exposição exacerbada da intimidade.
Cenas como essa são cada vez mais comuns com plataformas como a OnlyFans crescendo e se popularizando na internet. A busca pela nova queridinha dos internautas mais sapecas vem acompanhada de questionamentos, como “o que é?”, ou pelo nome de alguma figura feminina em alta. É o que mostram os dados disponibilizados pela ferramenta Google Trends, que apresenta os termos mais populares e buscados na web. A curva no gráfico que representa o crescimento de pesquisas relacionadas à OnlyFans é notavelmente brusca e repleta de contextos e debates sociais.
O conteúdo é oferecido por assinatura, em que criadores de conteúdo podem ganhar dinheiro de outros usuários. A plataforma permite que os criadores vendam vídeos, fotos e mensagens diretamente aos assinantes em uma base pay-per-view, assinatura mensal ou doações, com a empresa recebendo 20% dos pagamentos. Apesar de hospedar os mais diversos conteúdos, sua popularidade, sem dúvidas, se deve ao entretenimento adulto e explícito.
Fundada em 2016 pelo britânico Timothy Stokely, a rede social conta atualmente com mais de 150 milhões de usuários e mais de 1,5 milhão de criadores de conteúdo, segundo dados do próprio site. Em 2020, ano do grande boom, a plataforma acumulou um total de R$ 12,72 bilhões, um crescimento de 553% em relação à receita do ano anterior. O número de usuários cresceu de 20 milhões para mais de 120 milhões em meses.
Não é coincidência o ano de destaque ser justamente 2020. A procura pela plataforma está diretamente ligada à pandemia da Covid-19. A visão de Stokely era desenvolver um site onde os criadores de conteúdo de “todos os gêneros” pudessem monetizar sem anunciantes. A iniciativa logo chamou a atenção de atrizes e atores pornô, que a viram como um meio de trabalho mais independente. Porém, à medida em que as restrições impostas pela pandemia começaram a empatar atividades mais “físicas”, acompanhantes e seus clientes também passaram a utilizar a plataforma.
Com a popularidade do site e nomes como o da atriz Bella Thorne, no exterior, e MC Mirella e Anitta, no Brasil, lucrando com a plataforma, muitas pessoas viram uma oportunidade de complementar a renda, principalmente após perderem seus empregos durante o período pandêmico, ou, em alguns casos, de começarem o próprio negócio. Este foi o caso da streamer Flaviane Vasconcelos. Com apenas 22 anos, ela afirma receber entre cinco a dez mil reais por mês apenas com seu trabalho na internet.
Flaviane, que é paulista, formou-se no ensino médio em Joinville e logo se mudou para Florianópolis, onde começou a estudar economia. Ao perceber que não se identificava com o curso, tentou outras áreas, como Geografia e História, porém, foi em Administração que ela se sentiu em casa.
Em 2020, Flaviane já trabalhava na área administrativa, em uma empresa familiar, mas uma fonte de renda extra começou a chamar sua atenção: o close friends, do Instagram. A prática, no contexto de conteúdo adulto, consiste em postar fotos sensuais nos stories apenas para uma lista de seguidores selecionados, que neste caso pagam para estarem lá. “Eu via dando certo para algumas amigas e, por achar algo relativamente simples e que estava dando dinheiro, resolvi fazer”, relata.
Rapidamente, o que era para ser uma renda extra ultrapassou o que ela recebia trabalhando um mês inteiro. Com o crescimento do negócio, sem demora, Flaviane teve que escolher entre continuar no emprego fixo ou mergulhar de vez no mundo do entretenimento para maiores.
Sincera, a cam girl diz que sempre se interessou por conteúdos adultos e que trabalhar com isso foi como um curso natural em sua vida. Porém, ela revela que a principal dificuldade que teve foi “ter peito” para assumir a escolha que fez, assim como as consequências — ainda não muito claras para a profissional.
A família dela sabia desde o começo, mas todos pensavam ser uma atividade passageira. Com a saída de Flaviane do emprego, seus pais ficaram preocupados por conta do preconceito social, principalmente por ela ser uma mulher negra. “Não é o que eles queriam, mas respeitam.” Em meio a risadas, ela lembra uma frase do pai que a marcou: “Filha, existe puta de cem e de mil reais. Seja a de mil”.
Apesar do ótimo relacionamento familiar, foi na família que Vasconcelos passou pelo seu pior episódio de preconceito. Ainda quando decidiu largar o emprego formal, seu cunhado, e antigo patrão, a proibiu de ver o sobrinho, pois “não era um bom exemplo para ele”. Hoje, ela ri ao contar a história, mas revela ter ficado muito triste e chocada na época. “É um negócio que precisa ter um ótimo retorno para valer a pena”, desabafa.
Atualmente, segura quanto ao seu trabalho, a jovem conta com o Instagram, WhatsApp, Telegram, Twitter, Câmera Privê e OnlyFans, onde transita desde conversas exclusivas a conteúdos explícitos com parceiros. Colocando em prática tudo o que aprendeu na formação de administração, Flaviane se tornou, segundo ela, “uma empreendedora”. “Sou meu próprio produto”, conclui.
Quanto custa?
Para a psicóloga e professora Bruna Morsch, plataformas como a OnlyFans desumanizam e objetificam o sexo e a “lógica do amor”. Ela vê a ascensão desta plataforma como uma resposta sintomática às redes sociais, em especial ao Instagram. “Em uma mesma plataforma [Instagram] mistura-se exposição do corpo, venda de produtos, autoestima e ego”, explica ela, que ainda chama atenção para o fato de tudo isso ocorrer sob uma lógica ditada por algoritmos — na computação, uma sequência de instruções ou comandos realizados de maneira sistemática para resolver um problema, ou executar uma tarefa. “Diferente do passado, hoje, estamos mais a serviço das tecnologias”, completa Morsch.
Flaviane não curte a ideia de redes sociais separadas entre vida pessoal e trabalho, pois “são uma coisa só”. Para ela, as redes sociais são como uma vitrine e, tanto a OnlyFans, quanto o Câmera Privê, são portas para outras oportunidades de negócios, como relacionamentos sugar — relacionamentos românticos entre duas pessoas de idades distintas, nas quais uma das partes é sustentada por dinheiro, presentes ou outros benefícios em troca da relação amorosa — e serviços de acompanhante.
Atualmente, Flaviane trabalha sozinha, contando apenas com um assessor para cuidar das redes sociais. Em relação aos conteúdos que produz, ela diz que o Câmera Privê é “mais artístico”, já a OnlyFans é mais íntimo, explícito, trazendo inclusive parcerias. Quanto a serviços, como o de acompanhante, ela faz companhia em eventos e viagens, onde pode ou não envolver sexo.
Contudo, a paulista confessa que o trabalho, às vezes, pode ser um pouco desgastante. “É preciso entreter, manter uma conversa, estar sempre sorrindo… Precisa recarregar as energias, às vezes.” Nestes momentos, é normal Flaviane tirar um tempo para si. “Meu limite, em qualquer situação, é até onde me sinto confortável, e os caras respeitam isso”, relata Flaviane, que aponta essa “humanização” como um ponto positivo da OnlyFans. “Diferente do pornô, eles me veem como pessoa”, completa.
A psicóloga Bruna Morsch não vê a OnlyFans como um meio de conteúdo adulto humanizado e educativo. “Isso depende muito da intenção de quem produz e quem consome, o que não é a maioria dos casos.” A especialista acredita que o fato de não haver produtoras por trás das produções, como acontece na indústria pornográfica tradicional, pode ser bom, mas também perigoso, “tendo em vista o modelo indiscriminatório da plataforma, em que não existem diretrizes muito rígidas em relação aos usuários e produtores de conteúdo.”
Pornografia e Internet
Da literatura às fotografias francesas do século 19, o erotismo está presente na humanidade há séculos, sempre explorando, sobretudo, o corpo feminino. Com a ascensão do capitalismo liberal, tornou-se uma indústria multibilionária, extremamente massificada, que gera acumulação de capital em cima de uma estrutura que cria hierarquias e gera desigualdades, incluindo raciais e de gênero.
No livro The Erotic Engine – How Pornography has Powered Mass Communication, from Gutenberg to Google, o jornalista e pesquisador Patchen Barss afirma que a indústria pornográfica está diretamente ligada ao desenvolvimento e popularização de inúmeras tecnologias, como a fotografia, vídeos em VHS, DVD e Blu-ray, Pay-Per-View, streaming, e-commerce e até mesmo a internet banda larga.
Casos como o da sex tape vazada do casal de celebridades Pamela Anderson e Tommy Lee, nos anos 1990, e do topless acidental da cantora Janet Jackson, durante o Super Bowl de 2005, foram cruciais para a comercialização e disponibilização de vídeos na internet. A demanda por esse tipo de conteúdo ainda rendeu a criação de inúmeros sites e plataformas, como o YouTube.
Pessoas que curtem “malhar o braço” enquanto dão aquela espiadinha devem manter a atenção. A psicóloga Bruna Morsch afirma que o consumo de pornografia é algo normal, porém, pode ser um problema quando começa a afetar o cotidiano do indivíduo. “A pornografia é um gatilho de prazer, de recompensa, por meio do orgasmo, podendo, assim, também ser um gatilho de vício, como qualquer droga”, adverte.
Morsch ainda chama atenção para alguns problemas sociais e comportamentais resultantes do consumo da pornografia, como a naturalização de situações de assédio, misoginia, e, em casos mais extremos, estupro.
Além disso, uma pesquisa realizada em 2020 pelo Instituto Karolinska, na Suécia, em parceria com a Universidade de Washington, nos Estados Unidos, mostrou que jovens da geração Z, nascidos entre os anos 1995 e 2010, estão fazendo menos sexo. Entre as diversas causas apontadas pelos especialistas estão a Revolução Digital, que impacta diretamente nas relações interpessoais, que passaram a ser mais voláteis — com interações muitas vezes totalmente digitais, incluindo a troca de “nudes” —, e o crescimento do consumo de conteúdo sexual, devido ao livre acesso na internet.
A cam girl Flaviane afirma que não trabalharia na indústria pornográfica tradicional, pois o pouco que conhece a respeito não lhe agrada. Ela concorda que este pode ser um ambiente muito misógino, na maioria das vezes comandado por homens, onde não há muita autonomia para as mulheres. “Por se tratar de algo tão sensível, que é o nosso corpo e a nossa imagem, se não fosse numa perspectiva autônoma, eu não trabalharia”, reflete ela, que prefere plataformas, como a OnlyFans, por conta da visibilidade e oportunidades que a marca proporciona.
O gerente de vendas Ronald (nome fictício), 21, chegou a assinar perfis nas plataformas Privacy e OnlyFans, onde pagava, por mês, cerca de R$300 e R$100, respectivamente. Ele conta que não navegava muito nas plataformas. “Só abria e consumia”, comenta.
O jovem afirma ter consciência de que esse mercado pode contribuir para a exploração sexual, em especial do corpo feminino. “Tem muita ‘mina’ que faz, não porque quer, mas, porque precisa levantar uma grana”, ponderou ele. Quando questionado por que pagar por pornografia, tendo em vista o vasto acervo disponível na internet gratuitamente, Ronald afirmou se tratar de “gosto pessoal”. “É sobre olhar para a pessoa e se sentir totalmente atraído por ela, a ponto de pagar por seu conteúdo, o que nem sempre acontece com a pornografia tradicional”, completa.
Morsch salienta que, apesar das inúmeras problemáticas, a pornografia também pode ter pontos positivos, como a emancipação sexual, para pessoas sexualmente reprimidas, e até mesmo ser educativa, como propõe alguns movimentos, como a pornografia feminista e amadora, focadas em trabalhar com “corpos reais”.
Minha imagem, minhas regras!
Ser exclusivo não significa que a imagem de uma pessoa possa ser “roubada” e vendida em outras plataformas. Seja em público ou pela internet, no Brasil, o Código Civil garante que conteúdos sejam resguardados de possíveis usos indevidos.
O artigo 20 veda a utilização indevida de conteúdos que contenham a imagem de outra pessoa sem autorização que atinjam sua honra, respeito e comercialização. No caso da pornografia, ou cenas explícitas de sexo, pode ser considerado crime, conforme previsto no artigo 218-C do Código Penal, a divulgação de imagem sem consentimento da vítima.
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio — inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática —, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.
A lei surgiu principalmente para evitar que mulheres e crianças, público mais atingido, continuassem a sofrer estupro e exposição de imagem indevida. Um exemplo próximo da realidade são vídeos captados no transporte público onde homens utilizam da câmera celular para filmar corpos de mulheres. Recentemente, Carolina Brandão, usuária do Twitter, expôs em seu perfil pessoal uma situação de abuso que aconteceu no transporte público.
No tweet, ela explica que estava com o airdrop ligado, um recurso exclusivo da Apple que permite que o usuário envie e receba arquivos de forma simples. E percebeu que, um homem, sentado no chão próximo a ela, estava olhando e tentando compartilhar seu contato de telefone com ela. Após perceber que a ação não resultou no interesse da mulher, ele novamente insistiu e começou a mandar fotos explícitas de suas partes íntimas, conforme a vítima relata.
Apesar de não se tratar da filmagem da própria vítima, a importunação e o abuso sexual também são proibidos no Brasil. Para acompanhar a história completa, acesse o QR Code abaixo.
Nos sites mais famosos de pornografia no Brasil, como Pornhub ou XVideos, a fiscalização ainda é muito precária. Mas no Onlyfans, um site fechado, existe regulação? O dono do perfil “Master Fetish”, 26, relata que considera o site rigoroso em relação ao uso indevido de imagem. “Uma vez eu quase perdi minha conta, meu gato acabou passando atrás de um dos meus vídeos, e após um tempo minha conta foi bloqueada”, relata.Desde outubro de 2021, a plataforma adotou regras mais rígidas acerca de conteúdos considerados adultos. O objetivo desta mudança tem relação direta com o direito de imagem das pessoas. Portanto, estão proibidas gravações ao ar livre, transmissões ao vivo e em locais públicos. Também é estritamente proibido publicar conteúdos do OnlyFans que contenham nudez pública, e que no estado, país ou província seja uma atividade ilegal.
Para assistir com calma
Você sabia que no mundo acadêmico existe pesquisa sobre esse assunto? A advogada Luísa Neis Ribeiro, 22, abordou o tema no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Direito. Ela quis entender como a sexualidade foi reconfigurada pelo neoliberalismo — doutrina política e socioeconômica que defende “a prioridade do mecanismo de preços, o livre empreendedorismo, a competição, e um Estado imparcial e forte” —, como o mercado pornográfico se tornou a principal instituição a falar sobre sexualidade e como isso impacta o direito das mulheres.
Sua conclusão, no trabalho, foi de que o neoliberalismo não permite a contestação da forma como a pornografia se configura hoje, contribuindo para percepções conservadores da sexualidade. “Ele (neoliberalismo) abafa outras narrativas sobre sexo e reduz o erotismo à objetificação pornográfica”, conclui.
Luísa formou-se recentemente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e partiu para um mestrado acadêmico em Teoria Crítica e Neoliberalismo, para avançar na sua pesquisa.
Para saber mais, confira a entrevista exclusiva feita pelo Primeira Pauta com a acadêmica clicando aqui.