Desde 1981, associação traz cultura e educação para quem não tem acesso
Em busca de dignidade e direitos básicos, uma comunidade se uniu para transformar a própria realidade. No coração da zona sul de Joinville, por meio de incontáveis ações voluntárias, uma entidade foi construída com o esforço coletivo dos moradores locais. Esta é a história da Amorabi, Associação de Moradores e Amigos do Bairro Itinga, um lugar que, por meio da arte, amor e ação, abriu horizontes e renovou as esperanças de todos ao seu redor.
Desde 1981, a associação atua como porta-voz da comunidade. O objetivo inicial era atender as demandas dos moradores, como telefone, água, energia elétrica, linhas de ônibus, asfalto, educação, entre outras. Ao longo de décadas, a instituição se transformou em um símbolo de luta e representatividade, refletindo a força e a resistência dos moradores do bairro Itinga.
O Itinga está localizado na periferia da zona sul de Joinville. “Como o bairro é mais afastado, tudo vinha de forma muito tardia, ou então nem vinha se não fosse a mobilização e a pressão dos moradores”, conta a historiadora, produtora cultural e educadora social Letícia Helena da Maia.
Cristovão Petry, graduado em história, mestre em teatro, ex-presidente da Amorabi, e escritor do livro O teatro em comunidades periféricas, disse que os moradores eram muito engajados nas reivindicações: “Desde o começo as pessoas ajudavam na construção da AMORABI. Então, era um trabalho de formiguinha da comunidade, que estava sempre junto”.
A criação da associação foi fruto de muita mobilização da comunidade. O resultado do trabalho comunitário, realizado por voluntários, é notável devido às mudanças na vida da comunidade e das pessoas envolvidas com a Amorabi. Porém, segundo a historiadora Letícia, tudo só foi possível e se desdobrou a partir de uma ação da professora Juliana de Carvalho (Vovó Juliana), moradora do bairro.
Em 1990, uma pesquisa realizada no Itinga revelou que um dos maiores problemas era a falta de um Centro de Educação Infantil (CEI) na localidade. Sem nenhum projeto em andamento, a vovó Juliana doou sua própria casa para que a Amorabi instalasse nela o centro tão desejado, em 1991. O CEI Vovó Juliana foi o primeiro CEI Comunitário de Joinville.
A ação da vovó Juliana foi fundamental para o desenvolvimento do bairro Itinga. “O gesto de doar o seu único bem, para que fosse feita a creche aqui no Itinga, foi de extrema importância, pois a partir disso, muitos capítulos seguiram no bairro”, informou Letícia, que também já foi presidente da AMORABI.
Uma das filhas da Vovó Juliana, Virginia Vieira, contou o que motivou sua mãe a doar o terreno. “Ela fez essa ação por ver a ânsia, a agonia de muitas mulheres mães que precisavam trabalhar e não tinham com quem deixar as crianças”, contou. “Por conta disso, as crianças ficavam na rua sem cuidado, correndo perigo. Seu objetivo era protegê-las de possíveis violências, inclusive no trânsito”, finalizou.
“Então, a ideia de criação da creche surge com esse objetivo: para as mães poderem trabalhar e deixar seus filhos em um espaço seguro”, salientou a historiadora.
O gesto de solidariedade transformou a realidade da comunidade do Itinga. Com a criação do CEI Vovó Juliana, mulheres moradoras do bairro começaram a trabalhar voluntariamente no local. Do trabalho voluntário, veio o trabalho profissional para muitas delas, que se tornaram professoras concursadas na rede de ensino da cidade.
Segundo a educadora social, o CEI teve um impacto muito positivo e importante na construção cidadã e na abertura de novos horizontes na vida das mulheres que passaram por lá. “Mudou a vida de muitas mulheres e crianças. Inclusive, algumas foram minhas professoras, porque eu fui aluna do CEI Vovó Juliana”, informou. “Várias mulheres fizeram magistério a partir da experiência de voluntariado dentro da creche, e hoje elas são pedagogas”.
Uma dessas voluntárias que teve a vida transformada por conta da AMORABI é a Cirlé. Ela sempre ajudou no que podia durante o tempo que passou pela associação, já que via o local como uma segunda casa para ela e toda a sua família. “Assim como eu tinha a minha vida em casa, com a minha família, eu também vivia na Amorabi”, contou.
Foi um esforço para a vovó Juliana realizar o projeto voluntário.
As mães que ajudaram a colocar seus filhos no CEI ajudaram, elas se dividiam para realizar todas as tarefas necessárias no espaço.
No entanto, em determinado momento, a casa doada pela professora começou a ficar pequena para a demanda do bairro. “Imagina que antes disso, não havia creche no bairro. A casa era de madeira e tinha vários problemas. Era necessário um novo local”, informou Letícia.
Conforme a historiadora, os moradores lutaram muito para conseguir apoio da prefeitura. “Precisávamos realizar todos os entraves burocráticos. Era preciso ter um CNPJ, um estatuto”, disse. E assim, os moradores se articularam na luta pela construção de uma nova creche.
“A necessidade que faz a união do povo”, disse Letícia. Isso porque foi justamente a falta de uma creche que fez o povo se mobilizar, tudo feito de forma totalmente voluntária, com muitas pessoas envolvidas. Os moradores se mobilizaram para a aquisição de um novo terreno, que é onde fica a sede atual. A casa da vovó Juliana, primeira sede onde a creche funcionou de 1992 até 1999, foi vendida, e o dinheiro foi investido na construção do novo prédio.
Além da fase burocrática, Letícia contou que nos primeiros anos, houve muitos desafios. “Fomos atrás de apoio, com muita rifa, bingo, jantares beneficentes, entre outras coisas realizadas com a Igreja Menino Jesus para arrecadar dinheiro e construir a nova sede”, contou. O local passou por várias reformas. “A comunidade fez tudo, tijolinho por tijolinho. Foram muitos mutirões, muita gente ajudou”, completou.
A inauguração do primeiro andar do prédio, onde funciona até hoje o Centro de Educação Comunitário, ocorreu em 1999, o local era simples, porém muito acolhedor, utilizou recurso público para se erguer com a ajuda de todos os moradores fazendo diversos mutirões foram feitos até a finalização da obra.
Cirlé Pires Dourado que dedicou grande parte do seu tempo à associação, fala um pouco mais sobre as atividades que fez durante seu tempo como voluntária. “Eu trabalhava fora e o período que eu ficava em casa, eu ia lá dar uma ajudinha na cozinha, lavar louça, cortar verdura, ajudar na alimentação das crianças. Eu sempre ajudava e participava junto, vi todo o andamento”, completa.
Depois de superar muita dificuldade para continuar com o funcionamento do CEI Vovó Juliana, chegou um momento em que ficou inviável sustentar o lugar de maneira independente. “Mesmo sabendo que a responsabilidade não era nossa, precisávamos fazer acontecer”, disse a ex-presidente da entidade. Ela salientou que a comunidade nunca deixou de lutar para que um CEI público fosse construído no bairro Itinga.
Após anos de reivindicações, ocorreu a municipalização do CEI, que se tornou o Centro de Educação Infantil Municipal Professora Juliana de Carvalho Vieira. “Se não fosse municipalizado, o CEI Comunitário iria fechar, pois se tornou inviável mantê-lo de forma totalmente voluntária”, informou.
Outros recursos foram adquiridos para dar a possibilidade de uma mensalidade acessível e a contratação de profissionais, transformando o projeto em um CEI de fato, com professores contratados via CLT.
Portanto, a sede atual é fruto da venda da casa da Vovó Juliana, além de todas as mobilizações de arrecadação financeira que houve na época. O novo centro passou a abarcar não só atividades de educação, mas também se tornou um local de cultura e convivência da comunidade. No segundo piso, ocorrem outras atividades culturais. Além disso, o prédio se tornou a própria sede da Associação de Moradores e Amigos do Bairro Itinga.
A Amorabi teve um papel fundamental para a família de Cirlé, ela conta que a maior parte da cultura deles veio da associação. “Afetou no meu crescimento como pessoa e também dos meus filhos, pois parte deles foi formada ali, estudando, participando das peças, assistindo e fazendo parte como artista”.
Para Cirlé, a associação serviu como base para muita gente, transformando a vida de muitos que passaram por lá. “Seria um sonho se todo bairro tivesse um lugar assim, que acolhesse e que fosse um porto seguro para tanta gente que não tem condições de pagar para assistir uma peça, de estudar”.
Quem vinha de fora e não tinha família em Joinville, via na Amorabi um espaço tranquilo e acolhedor, para Cirlé. “Assim como eu vim da Bahia, muita gente veio de outros lugares e não tinham família aqui para dar um suporte. Então, para a gente, a Amorabi foi essencial”. Cristóvão contou que ver o impacto da associação na vida das pessoas é motivo de orgulho.
Letícia da Maia vê a associação como um espaço de fortalecimento de vínculos, em que há o sentimento de comunidade, solidariedade e de união. Ela contou que todos os seus conhecidos que passaram pela instituição nutrem esse sentimento que o espaço proporciona, e que isso vem do próprio motivo do surgimento da AMORABI, que foi construída com muito amor e gratidão à ação da professora Juliana.
Para a historiadora, o trabalho de construção da instituição é um exemplo da falta de políticas públicas nas periferias das cidades. Ela acredita que espaços como a AMORABI são um horizonte de esperança que permite que os direitos sejam garantidos.
No entanto, a educadora alerta que não se deve romantizar as dificuldades enfrentadas para manter um espaço como esse. Isso porque, segundo ela, foi a própria comunidade que assumiu a tarefa, um compromisso que deveria ser assegurado pelo próprio Estado.
A historiadora explicou que na ausência de políticas públicas, o que é muito comum, principalmente nas periferias, muitas vezes, a única saída é o povo se unir e agir para resolver os problemas que ali se encontram.
O lema da AMORABI é “O amor e a Ação”. Petry explicou que a frase se baseia no fato de que “não só com amor se conquista as coisas, mas é preciso agir”. E foi exatamente assim, com a prática de várias ações, que a entidade foi construída e ainda continua atuante na defesa pelo acesso à cultura e à educação.
“O bairro Itinga, mesmo estando à margem, mostrou a sua potencialidade de ser centro de referência quando o assunto é organização social e luta por direitos. O seu caráter reivindicatório foi propulsor de iniciativas que impactaram o cotidiano das famílias, principalmente das mulheres mães e seus filhos/as”, finalizou Letícia.
Juliana Paes Carvalho, também conhecida como vovó Juliana, nasceu em Mafra, no dia 07 de setembro de 1923, filha de Abel Pereira de Carvalho e Marcília Stephanes Paes. Foi alfabetizada em casa e continuou a estudar em Rio Negrinho, até o equivalente ao Ensino Fundamental. Casou-se e tornou-se professora. Criou 10 filhos.
Após o nascimento de seu último filho, no hospital de Rio Negro, migrou para o interior do Paraná, no final de 1961, já aposentada. Ficou viúva em 1973, indo para Curitiba em 1975 para os filhos estudarem. Depois veio para Joinville em 1980, onde adquiriu a casa no Itinga, posteriormente doada à AMORABI.
Após a doação da casa para a Amorabi, ela voltou a morar em Curitiba, mas sempre sempre fazia visitas esporádicas, segundo sua filha Virgínia Vieira. A vovó Juliana faleceu em 28 de abril de 2005, em Curitiba, onde foi enterrada.
Em 1992, no bairro, Cristóvão e Raquel, que participavam da igreja, tiveram a ideia de realizar atividades culturais com jovens no intervalo da catequese e crisma.
Petry conseguiu acesso a um roteiro de teatro sobre a obra Flicts, de Ziraldo. O texto trabalha sobre a questão da inclusão e do preconceito. “Eu sugeri então fazermos essa peça, porque na época a gente não tinha internet, não era como hoje”. Na época, o grupo era formado por 20 jovens, e ao decorrer da preparação, chegou a 40 membros.
Depois de toda a preparação eles começaram as apresentações por toda a cidade, “
Foi uma loucura, lotou o galpão da igreja, estava muito cheio, todo mundo falava, saiam até notinhas nos jornais. A gente começou a apresentar dentro de igrejas, de lar de idosos e outros locais, deu uma empolgação muito legal”.
Esse grupo inicial que trouxe a ideia de formar o Cultural Itinerante, fundado em 1994, contava com um grupo menor de pessoas, entre 6 e 7 pessoas ao todo. O grupo Itinerante conseguiu fazer uma parceria com a Amorabi para conseguir um espaço para os ensaios, essa parceria trouxe as sextas culturais para a associação, trazendo diversos artistas diferentes para se apresentarem na Amorabi, para Cristóvão Petry, o projeto foi um marco importante para uma conquista futura da Amorabi, que era fundamentar o ponto de cultura na associação “Nós começamos a movimentar a cidade, chamar os grupos de teatro, de dança, de tudo para fazer uma apresentação ali. Com isso a associação começou a virar um ponto de cultura, um embrião”.
O grupo cultural itinerante acabou em 2004, por outros compromissos dos voluntários, alguns foram fazer faculdade fora de Joinville, outros começaram a morar fora do Brasil, “Acabou não dando certo e no fim a gente acabou desligando”, completa Petry.
Após isso, a Amorabi continuou com oficinas de teatros, realizadas pela Samantha, que participava do Cultural Itinerante, e teve que se ausentar para fazer o mestrado em teatro. Ela também continuou sendo produtora cultural do espaço.
Em 2009, a instituição recebeu do governo federal o título de Ponto de Cultura. Em 2011, foi condecorada com a Medalha Cruz e Sousa de Honra ao Mérito Cultural. O convênio terminou em 2013, porém o reconhecimento como Ponto de Cultura continua.
Mais tarde, chegando em 2013, a partir das aulas de teatro na associação, foi criado o Abismo Teatro Grupo. Sob a coordenação do produtor cultural Cristóvão Petry, os atores Isadora Dourados dos Santos, João França, Lausivan Corrêa, Letícia Helena da Maia e Marcos Vicente formaram grupo teatral, com sede na Amorabi. Os jovens cresceram dentro da associação e fizeram daquele espaço o seu segundo lar.
Até hoje, há muitas atividades realizadas por voluntários na AMORABI. Os trabalhos envolvem artesanato, dança, música, teatro e entre outras atividades culturais e educacionais. Tudo é oferecido gratuitamente, ou por valores simbólicos.
A biblioteca comunitária da AMORABI, inaugurada em junho de 2022 dentro da associação, é um espaço dedicado ao enriquecimento cultural e educacional de sua comunidade. Seu acervo abrange uma diversidade de livros de autores locais, nacionais e estrangeiros, contemplando obras de literatura, política, história, sociedade, quadrinhos, mangás, materiais infantis e diversos gêneros literários.
Mais do que um simples repositório de livros, a biblioteca visa construir um projeto político e pedagógico voltado para o acesso à educação e à cultura popular. Além disso, possui um propósito claro de combater o sistema capitalista e de enfrentar questões como o racismo, a xenofobia, o machismo, o capacitismo, enquanto apoia e promove a cultura LGBTQIA+.
A carta de abertura da Biblioteca Lutador Dito expressa claramente sua missão de construir a sociedade do amanhã a partir do hoje, sempre com uma perspectiva inclusiva e respeitosa das diversas vozes e trajetórias que moldaram o caminho até aqui. Este espaço não apenas oferece livros e conhecimento, mas também se posiciona como um ponto de encontro e reflexão para toda a comunidade, incentivando o diálogo, a troca de ideias e o fortalecimento dos laços sociais.
Assim, a biblioteca não é apenas um local de leitura, mas um centro vital para o desenvolvimento intelectual, social e emocional de todos aqueles que a frequentam, contribuindo ativamente para a construção de um ambiente mais justo, inclusivo e consciente.
A AMORABI defende intensamente os interesses da região, tornando-se uma força determinante em várias de suas conquistas. Uma delas é o Cursinho Popular da Amorabi, criado em 2019 por professores, apoiadores, estudantes e comunidade. O projeto, sediado na Associação de Moradores do bairro Itinga, oferece aulas gratuitas preparatórias para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). As aulas ocorrem na Biblioteca Popular Lutador Dito, todos os sábados, a partir das duas horas da tarde. Elas são divididas por áreas de conhecimento, como Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Linguagens e Códigos, além de aulas de redação.
Como possui um forte contato com a comunidade local, o projeto busca atender às suas demandas educacionais. “A criação do cursinho se junta aos mais de 40 anos de luta da AMORABI pela educação popular no bairro Itinga e região”, informou o professor de Sociologia e Filosofia da organização, Edmundo Steffen.
Para quem tiver interesse, o projeto está em busca de novos alunos e voluntários. Além de novos professores, a organização também procura voluntários para as áreas de comunicação e organização. “Qualquer um pode apoiar o cursinho, não precisa ter uma formação específica, basta querer ajudar e participar conosco”, informa Edmundo. “Para os interessados, nós enviamos a nossa carta de princípios para informá-los onde estão entrando, o que estão construindo e se estão de acordo com o que construímos”, complementou.
Os interessados em participar das aulas gratuitas ou em contribuir com a associação, podem entrar em contato pelo e-mail: cursinhopopular.amorabi@gmail.com ou então pelo instagram ou twitter do projeto, que é @cursinhoamorabi.
Ao entender a responsabilidade histórica que o projeto carrega, o grupo de educadores e apoiadores desenvolveu um documento que apresenta os seus princípios organizativos. Este documento é a carta de princípios do Cursinho Popular Amorabi, que são: Interdisciplinaridade; Autonomia; Horizontalidade e Contra todas as formas de opressão.
Telefone: (47) 3465-0450
E-mail: cultura.amorabi@gmail.com
Endereço: Rua dos Esportistas, nº 510, Itinga.
Primeira Pauta é o jornal-laboratório produzido pelos estudantes do curso de Jornalismo da Faculdade Ielusc.
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