Violência contra jornalistas vira nova realidade para profissão
Nove a cada dez jornalistas vítimas de violência são mulheres.
No mês que marca o Dia Internacional pelo Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas (2) e o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres (25), dados da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) revelam que as mulheres jornalistas são as principais vítimas de violência física, digital e judicial. O relatório aponta que, a cada dez vítimas desses crimes, nove são mulheres.
“As violências físicas são muito comuns. As mais numerosas, no entanto, são as violências digitais. Mas o assédio judicial está crescendo muito. Identificamos 654 casos de assédio judicial no nosso sistema”, afirma a presidente da Abraji, Katia Brembatti.
O gráfico a seguir reúne o número de casos de violência registrados pela Abraji nos últimos cinco anos.
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Outro levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) identificou 96 casos de violência de gênero, com 65,5% das vítimas sofrendo violência psicológica e verbal. Também foram registrados casos de assédio sexual (28%), assédio digital (21%), maus-tratos (19%), agressão física (12,5%) e violência econômica (5%).
Assédio judicial
Um dos casos que simbolizam a violência contra profissionais de imprensa é o da jornalista política Amanda Miranda, de 41 anos. Após divulgar dados do Portal da Transparência denunciando o uso inadequado de recursos públicos, ela foi alvo de um processo judicial.
Miranda, que integra a Agência de Comunicação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), relata como o processo judicial tem impactado, principalmente, sua saúde emocional. “Um processo tem muitas etapas: ele entra no sistema, você começa a ser notificada, passa por audiências, espera pelas sentenças, até a sentença ser definida. Tudo isso provoca um desgaste emocional significativo para quem é processado”, explica.
O processo contra a jornalista foi motivado pela divulgação de dados públicos e resultou em duas ações judiciais: uma na esfera cível e outra na criminal. Em julho do ano passado, a jornalista foi notificada do processo, que teve seu desfecho apenas no final de dezembro, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito do juizado de pequenas causas.
No dia 11 de novembro, o processo foi encerrado, com decisão favorável à jornalista. Com mais de 20 anos de carreira, a profissional usa sua experiência para enfrentar as violências que acometem seus colegas de profissão. Por meio da newsletter Passando a limpo, ela compartilha reportagens sobre a divulgação de dados públicos e casos de violência contra a imprensa.
No depoimento em áudio a seguir, Miranda destaca que umas principais consequências do assédio judicial contra jornalistas é a autocensura.
Desinformação como raiz da violência contra jornalistas
Em 2022, os jornalistas Larissa Gould e Vitor Souza Lima Blotta desenvolveram o artigo Desinformação e violência contra jornalistas como violências contra a comunicação: análise de casos entre 2021 e 2022 em São Paulo e no Brasil. O estudo aborda como a desinformação é um fenômeno que, além de violar os direitos da comunicação, alimenta a violência contra os jornalistas.
Larissa Gould é pesquisadora e membro do Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome (MDS) e da Secretaria Jurídica do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo. Ela reflete sobre como esse contexto se relaciona com a dinâmica histórica e estrutural da sociedade brasileira. “Essa violência é intrínseca à nossa história e tende a se fortalecer à medida que as democracias se enfraquecem”, especifica.
Os principais achados do estudo revelam que o crescimento da violência contra jornalistas está diretamente associado à escalada da desinformação, intensificada pelas plataformas digitais. Para Gould, embora as mídias digitais desempenhem um papel determinante no agravamento desse fenômeno, elas não são a única causa. “A escalada da violência contra jornalistas no Brasil faz parte de um fenômeno estrutural, de diversas camadas”, explica.
O estudo também aponta que a desinformação atua como um processo sistêmico de violência contra a comunicação pública, violando princípios básicos como o direito à informação confiável e o dever do Estado de garantir transparência. Essa dinâmica se reflete em um aumento significativo da violência física e virtual contra profissionais da imprensa.
Além disso, a pesquisadora destaca o impacto das redes sociais no cenário atual. Apesar das iniciativas anunciadas por plataformas digitais para conter discursos de ódio, muitas vezes essas mensagens se tornam parte de um modelo de negócio lucrativo, baseado no alto índice de engajamento que geram.
As plataformas digitais já enterraram o debate sobre serem apenas condutores de mensagens. Sua responsabilidade é proporcional ao seu poder de mídia”
Larissa Gould, pesquisadora
O contexto político também surge como uma variável crucial. Durante o período analisado, a hostilidade contra jornalistas foi intensificada por discursos de figuras de destaque, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, que liderou ataques institucionais contra a imprensa. Só em 2021, Bolsonaro foi responsável por 147 episódios de agressões a jornalistas, segundo a Fenaj.
Por fim, Gould ressalta que as dificuldades enfrentadas pelos jornalistas vão além das ameaças físicas. Há a precarização da profissão, marcada por baixos salários e acúmulo de funções, bem como a violência psicológica derivada de ataques constantes nas redes sociais. Segundo o estudo realizado em parceria pela Repórteres Sem Fronteiras e pela Gênero e Número, 15% das jornalistas brasileiras relataram desenvolver problemas de saúde mental devido a essas agressões.
“A violência contra jornalistas é a face mais cruel do enfraquecimento da democracia e do impacto da desinformação. É um ciclo que precisa ser interrompido com ações conjuntas de regulação, educação e valorização da profissão”, conclui.
Papel das organizações jornalísticas
A Abraji é uma das principais organizações jornalísticas dedicadas à promoção do jornalismo investigativo no Brasil. A presidente da Abraji lamenta que o trabalho dos jornalistas tenha se tornado cada vez mais desafiador e perigoso.
“Há duas décadas se dizia que o jornalismo só era perigoso em algumas áreas específicas, por exemplo, cobertura de narcotráfico, milícias, crime organizado, alguns tipos de policial e cobertura de guerra. Mas hoje em dia o clima de animosidade, o incentivo a ver o jornalista como inimigo fez com que algumas ações corriqueiras, como cobrir uma manifestação de rua, passassem a ser momentos de possível violência, de potencial violência contra os jornalistas.”
Katia Brembatti, presidente da Abraji
Brembatti relembra o emblemático caso do jornalista Tim Lopes, brutalmente assassinado, em 2002, enquanto investigava atividades criminosas, um episódio que marcou profundamente a história do jornalismo no país. O caso foi um dos principais motivadores para que a Abraji se empenhasse em apoiar e estudar as práticas do jornalismo investigativo, contribuindo para a segurança e a capacitação de seus profissionais.
Os dados apresentados abaixo mostram que a atividade de reportagem é a mais suscetível a sofrer violência.
!function(e,n,i,s){var d=”InfogramEmbeds”;var o=e.getElementsByTagName(n)[0];if(window[d]&&window[d].initialized)window[d].process&&window[d].process();else if(!e.getElementById(i)){var r=e.createElement(n);r.async=1,r.id=i,r.src=s,o.parentNode.insertBefore(r,o)}}(document,”script”,”infogram-async”,”https://e.infogram.com/js/dist/embed-loader-min.js”);Outro aspecto presente na violência contra jornalistas é a violência de gênero, frequentemente usada por agressores virtuais para atingir profissionais de comunicação. Brembatti classifica, no áudio a seguir, esses agressores como “marcadores sociais”, destacando que, além de mulheres jornalistas, outros grupos minoritários também se tornam alvos desses ataques.
Para ajudar a garantir a segurança de jornalistas investigativos, a Abraji disponibilizou um curso no YouTube, ministrado por um instrutor britânico. O conteúdo aborda estratégias de proteção na internet, entre outras práticas essenciais para a segurança digital e pessoal dos profissionais.
Crescimento dos assédios judiciais
Samira de Castro Cunha, 48 anos, jornalista e presidenta da Fenaj, destaca o assédio judicial como uma das formas mais preocupantes de censura na atualidade. Segundo ela, o uso abusivo do sistema de justiça, conhecido como SLAPP (Strategic Lawsuit Against Public Participation), tem como principal objetivo intimidar jornalistas e sufocar o exercício da profissão, impondo altos custos financeiros e sérios impactos psicológicos aos profissionais. Saiba mais sobre SLAPP no áudio.
Para combater esse tipo de censura, Samira explica que a Fenaj tem trabalhado em parcerias importantes, como com o Instituto Tornavoz e a Coalizão em Defesa do Jornalismo. “Além de apoio jurídico, buscamos oferecer suporte psicológico e institucional às vítimas, pois a censura judicial não apenas impede a veiculação de informações, mas também inibe o jornalista, provoca receio e desgaste mental, além de gerar altos custos financeiros”, diz.
Samira ainda destaca a necessidade de avançar com uma legislação anti-SLAPP no Brasil, inspirada em modelos europeus.
“Uma lei que proteja jornalistas de demandas judiciais abusivas é essencial. Já temos algumas jurisprudências importantes estabelecidas pelo STF, mas precisamos de um projeto robusto que garanta o livre exercício da profissão e proteja a liberdade de expressão.”
Samira de Castro Cunha, presidenta da Fenaj
Por sua vez, a Abraji, além de denunciar as agressões, busca capacitar os jornalistas para enfrentarem os desafios do cenário atual. A organização oferece cursos, como o treinamento em segurança digital, que ensinam práticas de proteção tanto na internet quanto no dia a dia.
O papel de organizações como Abraji e Fenaj é fundamental para dar visibilidade à violência contra jornalistas e criar mecanismos de proteção. “Precisamos seguir denunciando e pressionando por mudanças. Somente assim podemos garantir que o jornalismo continue exercendo seu papel de informar a sociedade e promover a transparência”, conclui Samira.